domingo, 18 de maio de 2008

A PREVENÇÃO DO CRIME E DA VIOLÊNCIA COMO DIMENSÃO
NECESSÁRIA DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA.


(Outubro de 2004)

Carolina de Mattos Ricardo 1

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é situar o debate sobre prevenção da violência e criminalidade no contexto de uma política de segurança pública. Pretende-se aqui afirmar que para reduzir a violência e a criminalidade, não bastam as ações de endurecimento do controle do crime e da violência, mas que é preciso pôr ênfase nas ações preventivas,concebendo esse tipo de ação para além da esfera do Direito Penal.

Inicialmente, o artigo contextualiza, de forma breve, o problema da violência e criminalidade, particularmente na década de 90, no Brasil, apontando alguns índices de criminalidade e indicando a principal tendência das respostas governamentais dadas ao problema, bem como o tipo de reivindicação que começou a ser feita pela população reproduzindo o medo do crime e o discurso por endurecimento das políticas de controle que começou a pautar o debate. Para então, mostrar que o caminho de endurecimento das políticas parece não ter sido suficiente para resolver o problema ou ao menos amenizá-lo significativamente.

Em seguida, o artigo aponta uma primeira possibilidade de prevenção do crime e da violência elaborada pelo Direito Penal, mas indica que apenas essa elaboração também parece não ser suficiente para lidar com o problema, uma vez que tem sido muito difícil conciliar a elaboração teórica do Direito Penal sobre prevenção do crime e da violência com a realidade empírica e avaliar esse possível “resultado preventivo”, bem como porque essa resposta preventiva dada pelo Direito Penal encontra-se na chave da própria pena, o que, por si só, já é complicado se o que se pretende é pensar prevenção de uma forma mais abrangente e eficiente, capaz de torná-la parte prioritária de uma política de segurança
pública.

Por fim, o artigo apresenta uma concepção alternativa de prevenção da violência e criminalidade, baseada, sobretudo em resultados preventivos, de violência e crimes evitados e na articulação de diferentes esferas e atores sociais, que inclui, inclusive as agências de controle: polícia, justiça criminal e administração penitenciária, ilustrando a idéia com o caso de Bogotá.

CONTEXTO DE CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA E DO MEDO DO CRIME E OS CAMINHOS DAS RESPOSTAS DADAS AO PROBLEMA

A década de noventa no Brasil foi marcada pelo crescimento nas taxas de criminalidade e violência. Em relação às taxas de homicídios por 100 mil habitantes, por exemplo, houve um crescimento de 26,4%, variando de 20,9 em 1991 para 28,4 em 2002 (tabela 1 anexa). Na região metropolitana de São Paulo, verificou-se um brutal crescimento nas taxas de roubo a mão armada por 100 mil habitantes, variando de 269,05 em 1981, para 562,63 em 1991 e para 879, 79 em 2002, ou seja, uma variação de 69,42% entre 1981 e 2002 (tabela 2 anexa).

Diante desse cenário a preocupação com a segurança pública passou a ocupar uma parte significativa do debate público, seja na mídia, nas esferas políticas federal, estadual e municipal, na sociedade civil ou ainda nos centros de pesquisa. O medo do crime e da violência passou a compor a realidade e o imaginário da coletividade que, a partir de experiências concretas ou não, passou a produzir e reproduzir o que Teresa Caldeira chamou de fala do crime. “As narrativas de crime, ao lidar com a desordem da experiência causada pelo crime (ou por um dos processos de ruptura que o crime simbolicamente expressa), produzem um certo tipo de significação. Essas narrativas são simplistas, intolerantes e marcadas por preconceitos e estereótipos. Elas contradizem o discurso e as iniciativas democráticas, exatamente os tipos de prática que a sociedade brasileira estava tentando consolidar quando o crime tornou-se a fala da cidade. Além disso, embora as discussões aguçadas da fala do crime reordenem de fato as experiências perturbadas pela violência, não são eficazes para controlar a violência. Ao contrário, elas reproduzem o medo e a violência.” [CALDEIRA (2000, pp.30/40)].

Assim, além do efetivo crescimento da criminalidade, verificou-se e o crescimento do medo do crime ou da sensação de insegurança. Diante desse quadro começaram a surgir demandas por mais segurança e por maior repressão à criminalidade, ainda que de forma pouco democrática. Discursos a favor de aumento de penas, da redução da maioridade penal, da criminalização de um maior números de conduta, de uma polícia mais dura e de prisão sem direitos passaram a compor significativamente o discurso público sobre o tema.

No entanto, ao mesmo tempo em que essas demandas foram surgindo, foi ficando claro que a simples repressão à criminalidade e violência não era suficiente para lidar com a complexidade do problema. O aumento de penas e restrição de benefícios para tipos específicos de crime, o aumento do efetivo policial e a construção de mais presídios(2) não foram suficientes para conter a criminalidade(3). A partir daí, uma forma alternativa de lidar com o problema, com propostas voltadas para possíveis causas, fatores de risco e de proteção e para problemas específicos, e que envolvesse diferentes setores do poder público, da sociedade civil, de centros de pesquisa e de organizações internacionais foi sendo desenhada e a idéia de prevenção da violência e da criminalidade foi se constituindo.

O professor Agustín Carrillo, analisando a situação do México em relação à legislação em matéria de prevenção delitiva na década de 90, trás uma série de reflexões e apontamentos que será útil para nossa reflexão em relação à realidade brasileira, uma vez que ambas apresentam uma séria de similaridades. O aumento da violência e da criminalidade significa o aumento de conflitos sociais. Na análise do fenômeno da violência e da criminalidade, não basta o levantamento sobre as violações à lei, mas é necessária uma análise de fatores culturais, sociais e políticos. Esse diagnóstico mais profundo e complexo do fenômeno exige respostas e alternativas também complexas. Nas palavras de Agustín Carrillo: “La comprensión de los conflictos sociales y de sus consecuencias requiere de investigaciones con conceptos diferentes de los de la dogmática jurídica y el derecho. Sólo así será posible solucionar el conflicto social y contener SUS síntomas. Conviene concentrarse en la prevención de los conflictos sociales y en La urgencia de establecer medidas necesarias y suficientes para que no se repitan, sanear el ambiente social con decisiones y acciones tendientes a la desaparición de las causas que los producen y simultáneamente atacar los síntomas”. [CARRILLO (2002, p.40)].

Fica claro, portanto, que políticas de segurança pública devem considerar duas formas de lidar com o problema da violência e da criminalidade: uma que passa pela aplicação da lei penal e que envolve as agências de controle: polícia, justiça criminal e administração penitenciária, e outra que não envolve a aplicação da lei penal. As políticas de segurança pública devem se concentrar nas causas e nos sintomas da criminalidade e violência, simultaneamente.

Políticas de segurança pública não podem se reduzir a respostas pontuais para demandas apaixonadas por combate à criminalidade e não podem se reduzir a alterações legislativas e de endurecimento das ações das agências de controle de violência, mas devem incorporar, principalmente a idéia de prevenção da violência.

A PREVENÇÃO POSSÍVEL NO DIREITO PENAL

A idéia de prevenção no Direito Penal surgiu com as teorias relativas sobre a finalidade da pena, que, ao contrário da teoria absoluta que atribuía uma finalidade retributiva à pena, atribuíam à pena a função de proteção da sociedade por meio da prevenção possível dos ilícitos. “Los fundamentos ideológicos de las teorias relativas están constituídos por las teorias políticas humanitárias de la Ilustración, por la inclinación a La explicación científica causal del comportamiento humano, por la fe em la possibilidad de educar a las personas, inclusive las adultas, a través de uma adecuada intervención sociopedagógica y por el escepticismo frente a todos los intentos de explicar metafisicamente los problemas de la vida social. Em las teorias relativas coinciden, por tanto, ideas humanitárias, sociales, racionales y utilitárias”.(4)

Para o Direito Penal, há duas formas possíveis de prevenção: a prevenção geral e a prevenção especial, e ambas dividem-se em positiva e negativa(5). O conceito de prevenção geral negativa funda-se na idéia de intimidação. A pena previne a prática de delitos na coletividade, na medida que coage psicologicamente os indivíduos que desistem de praticar o crime. Haveria nesse caso a intimidação pela simples previsão legal de uma sanção.

O conceito(6) de prevenção geral positiva funda-se na idéia de exemplaridade, ou seja, na idéia de que a norma penal irradia efeitos positivos na medida que incentiva e fortalece a confiança normativa. A pena se legitima no reforço geral da consciência jurídica da norma. Haveria três efeitos principais da aplicação da pena fundada na prevenção geral positiva: aprendizagem (reforça e recorda as regras com a aplicação da pena); confiança (com imposição da norma pela pena); e a pacificação social (restabelecimento da paz jurídica com a intervenção estatal).

A prevenção especial difere fundamentalmente da prevenção geral (positiva ou negativa), pois atua no agente do ato ilícito e não na coletividade como um todo, deixando de ser uma abstração para tornar-se concreta, ao menos para aquele ao qual a pena é imputada.

A prevenção especial negativa funda-se na idéia de intimidação a partir da neutralização do apenado, que fica fora de circulação e percebe que sua ação tem uma conseqüência jurídica, o que evitaria o cometimento de novos ilícitos penais. Já a prevenção especial positiva, funda-se na idéia de ressocialização buscando reintegrar o agente do ilícito à sociedade.

A prevenção do crime (geral ou especial) concebida pelo Direito Penal relaciona-se fundamentalmente com a sanção. Essa concepção, no entanto, trás algumas contradições. Para validar empiricamente a idéia de prevenção elaborada pelas teorias relativas, seria preciso analisar o grau de reincidência, que deveria ser muito baixo ou quase nulo, e o comportamento das pessoas em relação às previsões legais, ou seja, seria preciso investigar se as pessoas, de fato, deixam de cometer crimes em decorrência da pena prevista.

No entanto, tal avaliação é muito complicada e não é feita na prática. Os índices de reincidência são altos, embora não haja um acompanhamento sistemático e organizado que permita dimensionar a reincidência para os diferentes tipos de crimes e respectivas penas que possibilite analisar o potencial real da prevenção especial(7). O discurso da prevenção baseada apenas na sanção passa, então, a ser questionado. Nas palavras do professor Agustín Carrillo: “El propósito de la prevención delictiva, de acuerdo com este enfoque, sería desalentar, por médio del efecto motivador de la representación de la sanción o por el valor de los bienes protegidos con las obligaciones impuestas, la conducta tipificada em la ley penal. Se trata de motivar cierta conducta con la representación del castigo o con La bondad del madato. La tradición en la teoría del derecho, y en particular en derecho penal, ha sido la de considerar ese sistema normativo como una técnica específica de control social, mediante la cual se pretende lograr los objetivos determinados por los órganos estatales, con la amenaza de la sanción y de la aplicación de la misma cuando se presenta la conducta opuesta a la deseada por las autoridades estatales o por el contenido valioso de las normas jurídicas. Esta técnica de control social es preventiva en esos términos . Las teorías sobre la prevención en sus diferentes expresiones y desarrollos durante largo tiempo se apegaron a esta tradición jurídica hasta llegar a justificar la pena de muerte” [CARRILLO (2002, pp. 42/32)].

É, portanto, necessário deslocar o conceito de prevenção do crime para outras esferas que não se relacionem, necessariamente, com a aplicação da lei penal. A prevenção da criminalidade e da violência deve se dar em esferas múltiplas que dialoguem. Nas esferas das políticas públicas, de programas sociais focados e até mesmo de programas que envolvam as agências de controle da violência: polícia, justiça criminal e administração penitenciária.


CONCEPÇÃO ALTERNATIVA DE PREVENÇÃO DO CRIME E DA VIOLÊNCIA


Diante da constatação de que os índices de criminalidade e violência cresceram consideravelmente na década de noventa, de que cresceu também o medo e a fala do crime, bem como a sensação de insegurança, de que, paralelamente, houve um reforço na ação da aplicação da lei penal pelo Estado através de medidas mais repressivas como aumento de prisões, aumento de efetivo policial e das penas, mas que o problema da violência e criminalidade continua sendo central, surge a necessidade de trabalhar com o problema a partir de uma outra perspectiva: de prevenção. Contudo, a possibilidade de prevenção do crime e da violência elaborada no âmbito do Direito Penal, não dá conta de efetivamente prevenir a criminalidade e a violência. É preciso, portanto, apresentar uma alternativa de prevenção que seja aplicável na prática e que atinja a complexidade do problema.

A prevenção do crime e da violência proposta aqui deve ser concebida na lógica de resultados e sua concepção passa pelo diálogo com outras áreas do conhecimento, em especial a da saúde pública. Uma ação é preventiva, na medida que com ela atinge-se determinado resultado, ou seja, evita-se um ato violento que, sem essa ação preventiva, teria ocorrido. A ação preventiva pode incidir na redução de fatores de risco de violência e criminalidade ou no aumento ou reforço de fatores de proteção. A lógica de resultados com o objetivo de reduzir a incidência e o impacto de crimes e violências na sociedade que rege a prevenção aqui proposta é importante para afastar a idéia de prevenção da simbologia prevenção versus repressão, uma vez que esse debate, falso, acaba por dificultar a efetividade das medidas(8). Para viabilizar essa prevenção é preciso ter objetivos definidos claramente, bem como considerar as características específicas dos crimes e violências que se pretende evitar e das comunidades em que estes crimes e violências acontecem.

Além disso, a prevenção do crime deve ser feita de forma articulada entre as diferentes áreas e atores sociais: saúde, educação, trabalho, justiça, polícia, administração penitenciária, mídia, sociedade civil, setor privado(9).

O foco em fatores de risco(10) e/ou de proteção(11) é importante para a diminuição da vulnerabilidade(12) a crimes e violências e/ou para o aumento da resiliência13 a crimes e violências. Segundo o professor Carrillo: “La detección de los factores de riesgo se logra com La elaboración y aplicación de modelos que contengan indicadores sobre ambientes, espacios, tiempos, personas, actividades, actitudes, formaciones, etc., cuya presencia facilita, tolera o motiva actitudes o condiciones de riesgo de los hechos que se pretende evitar” [CARRILLO (2002, p. 46)].

Assim, tanto para trabalhar com fatores de risco como com fatores de proteção, é necessário realizar um bom planejamento, com a elaboração de um diagnóstico preciso do problema no qual se vai atuar, eleger as estratégias relacionadas com a solução para o problema diagnosticado, implementá-las e monitorar e avaliar seus resultados. Sem esses quatro passos, fica muito difícil avaliar se um programa de prevenção do crime e da violência deu resultados ou não. Com essa metodologia é possível até avaliar os impactos das medidas preventivas puramente legislativas proposta pelo Direito Penal (ainda que não seja esse o tipo de “prevenção ideal” proposto aqui).

Há três tipos de prevenção que podem produzir bons resultados em relação ao crime e à violência. Os três tipos(14) podem ser utilizados conjuntamente ou isoladamente, dependendo do problema com o qual se vai lidar.

A prevenção primária é composta por ações dirigidas ao meio ambiente físico e/ou social, com foco prioritário nos fatores de risco e/ou de proteção no meio ambiente urbano, no qual ocorre a criminalidade e a violência. A prevenção primária pode incluir ações que implicam mudanças mais abrangentes, na estrutura da sociedade ou comunidade, visando a reduzir a pré-disposição para a prática de crimes e violências na sociedade (prevenção social) ou pode incluir ações que implicam mudanças mais restritas e pontuais, nas áreas ou situações em que ocorrem os crimes e violências, visando a reduzir as oportunidades para a prática de crimes e violências na sociedade (prevenção situacional).

Ampliação dos serviços de saúde direcionados a famílias com filhos recém nascidos, ampliação das oportunidades de educação e trabalho na comunidade, por exemplo, são ações típicas de prevenção social. Limitação e controle do uso de armas, modificação de horários e locais de atividades econômicas, sociais e culturais e aumento da vigilância, são ações típicas de prevenção situacional.

A prevenção secundária é composta por ações dirigidas a pessoas e grupos mais suscetíveis de praticar ou sofrer crimes e violências e aos fatores que contribuem para sua vulnerabilidade e/ou resiliência, visando a evitar o seu envolvimento com o crime e a violência ou limitar os danos causados pelo seu envolvimento com o crime e a violência ou ainda a pessoas e grupos mais suscetíveis de serem vítimas de crimes e violências, visando a evitar ou a limitar os danos causados pela sua vitimização. Ações de prevenção secundária são freqüentemente dirigidas aos jovens e adolescentes, e a membros de grupos vulneráveis e/ou em situação de risco, inclusive crianças, mulheres e idosos em casos de violência doméstica ou intra familiar, mulheres em casos de violência de gênero, e afro descendentes em casos de violência contra minorias.

A prevenção terciária é composta por ações dirigidas a pessoas que já praticaram crimes e violências, visando a evitar a reincidência e a promover o seu tratamento, reabilitação e reintegração familiar, profissional e social, bem como a pessoas que já foram vítimas de crimes e violências, visando a evitar a repetição da vitimização e a promover o seu tratamento, reabilitação e reintegração familiar.

A prevenção do crime e da violência pode ser realizada por distribuição de ações em algumas áreas temáticas específicas, como comunidade, família, escola, trabalho e geração de renda, polícia, justiça criminal, sistema prisional e saúde.

Para ilustrar a possibilidade dessa concepção alternativa de prevenção, será apresentado brevemente o caso de Bogotá(15). A cidade de Bogotá, na Colômbia, alcançou uma significativa redução dos índices de criminalidade e violência. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu de 80 em 1993, para 28 em 2002, além disso, o número de acidentes de trânsito foi reduzido à metade entre os anos de 1985 e 2002. A queda nesses índices foi acompanhada pela tendência decrescente nas pesquisas de vitimização e de avaliação da sensação de insegurança, bem como da melhoria de alguns outros indicadores de educação e saneamento básico.

Para implementar uma década de políticas de segurança, passando por quatro gestões, a estratégia utilizada foi a incorporação da prevenção do crime e da violência como dimensão prioritária na política de segurança pública. Nesse período, houve manutenção e continuidade das políticas mesmo com as mudanças de gestão em um processo em que as autoridades civis e locais assumiram a liderança nas questões de segurança pública.

Foi realizado um preciso diagnóstico sobre os principais problemas relativos à segurança pública e foi constatado que os homicídios por motivos banais (álcool e armas de fogo) e intolerância em conjunto com a violência doméstica eram os dois principais problemas. Para lidar com os problemas foram definidos três enfoques prioritários de intervenção: promoção de uma cultura cidadã, com a inauguração de um novo discurso político e de uma nova forma de governar; a defesa do espaço público; e a melhoria da capacidade de controlar o delito e de sancionar infratores.

Para levar adiante a política de segurança pública nesses três focos de intervenção, foram definidas quatro estratégicas principais implementadas por meio de ações e programas específicos:

1.Desarmamento dos cidadãos e estímulo ao consumo responsável de bebidas alcoólicas: elaboração de um Plano de Desarmamento (controle das armas, legais e ilegais e restrição ao porte nos fins de semana), realização de campanhas pelo desarmamento, implementação da chamada “Lei Seca” (restrição do horário de funcionamento de estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas, primeiro até 1h, posteriormente flexibilizado para até às 3h), e realização de campanha de conscientização sobre álcool para jovens e álcool e trânsito.

2.Mecanismos alternativos de resolução de conflitos: criação de unidades de mediação e conciliação para resolução de conflitos cotidianos, implantação de delegacias de família como espaços de orientação para a família para prevenir e resolver conflitos e criação de instância de conciliação para a polícia administrativa.

3.Recuperação do espaço urbano: criação do Departamento Administrativo de Defesa do Espaço Público, obstáculos nas calçadas, horário para tirar o lixo, recuperação de eixos rodoviários, melhoria do transporte público, recuperação de eixos viários importantes e
intervenções em locais particularmente deteriorados.

4.Policiamento e melhoria da capacidade de sancionar o delito: fortalecimento da polícia metropolitana com avaliação de desempenho dos departamentos com base em indicadores, aumento do investimento na polícia metropolitana, criação de Centros de Atendimento Imediatos (CAIs), modernização do sistema de comunicação e frota automotiva, incentivo aos policiais e programas de capacitação (direito humanos, polícia comunitária, polícia judiciária, violência doméstica...), programa de polícia comunitária, zonas seguras (novo modelo de gestão de segurança no espaço público), reforma da cadeia distrital e construção da Unidade Permanente de Justiça (UPJ) e fortalecimento da investigação criminal com capacitação e padronização de procedimentos.

O contexto que possibilitou a implementação dessas ações foi fundamental e contou com uma série de atividades. Foram realizadas algumas reformas para institucionalizar os temas e prioridades relativos à segurança, foram criadas algumas instâncias para gerenciar e para coordenar as ações inter-institucionalmente (conselhos, comitês), houve um uso sistemático de espaços para avaliação das ações e para tomadas de decisões (como o Conselho Distrital de Segurança e o Comitê de Vigilância Epidemiológica de lesões de Causas Externas), foram criadas ferramentas para monitoramento (como o Observatório de Violência e Delinqüência e Sistema Unificado de Informação sobre Violência e Delinqüência), foram destinados recursos aos projetos e ações de segurança e houve a reestruturação do Fundo de Vigilância e Segurança e acesso a fontes financiamento internacional.

Esse exemplo de Bogotá, não é perfeito. É bem sabido, inclusive, que a Colômbia conta com índices altíssimos de violência e criminalidade. No entanto, ele deu certo para a redução significativa de alguns índices de violência em Bogotá, durante 1993 e 2002. O importante desse exemplo é que ele demonstra a convivência de ações de prevenção primária, secundária e terciária, em diferentes eixos temáticos, como comunidade, polícia, justiça criminal, educação e conscientização, saúde, ambiente urbano, entre outros. Outro ponto relevante é o diagnóstico, monitoramento e avaliação de resultados. Essa metodologia permite precisão e maior objetividade na intervenção, reduzindo o risco das “respostas apaixonadas”, possibilitando até que algumas medidas mais polêmicas de controle sejam efetuadas com respeito aos direitos e aos princípios democráticos e com controle social.

Nesse exemplo de Bogotá, foram verificadas algumas dificuldades e limitações, como a dificuldade na relação entre os níveis nacional e local, a dificuldade de realizar avaliações precisas sobre o impacto de cada ação nos índices de criminalidade, a dificuldade de determinar a eficiência das ações em termos de custo benefício, a realização de novos estudos/diagnósticos com resultados diferentes, como a ocorrência de mortes violentas concentradas em locais específicos, um maior número de mortes provocado por assaltos e ajustes de contas do que pela violência doméstica e abuso de álcool e a relação entre locais com alto índice de violência e presença da criminalidade organizada e a dificuldade de incorporar esses novos diagnósticos na política, a ausência de linhas básicas e de informação para construção de indicadores e o super-dimensionamento do impacto de algumas medidas.

Ainda assim, com essa série de limitações, a política foi exitosa e incorporou a prevenção da criminalidade e violência como dimensão estruturante. Nas palavras das autoras do estudo de caso de Bogotá: “O caso de Bogotá ilustra o desenvolvimento de uma política de segurança cidadã, na qual são aplicadas estratégias de diferente índole, como o controle de fatores de risco como o consumo de álcool e o porte de armas de fogo; o fortalecimento da capacidade policial na cidade, iniciativas relacionadas a mudanças culturais tendentes a aumentar o respeito pela vida e pela auto-regulação dos comportamentos cidadãos e intervenções no espaço urbano deteriorado, entre outras. Esta combinação de estratégias e seus resultados em termos de redução da criminalidade e da sensação de insegurança na cidade fazem com que esta experiência se transforme em um bom exemplo das diversas possibilidades existentes para enfrentar fenômenos de criminalidade urbana e, particularmente, de violência. Este caso também permite considerar a eficácia de algumas intervenções, assim como o processo de avaliação de resultados das políticas aplicadas”.[LLORENTE e RIVAS (2004, p. 2)]

Assim, acreditamos ser possível incorporar essa concepção mais abrangente de prevenção da criminalidade e violência como uma dimensão prioritária para uma política de segurança pública democrática e eficiente e que consiga começar a reverter efetivamente os índices de criminalidade e violência, bem como reverter a fala do medo e a sensação de insegurança.





1 A autora é advogada e cientista social. Mestranda na área de concentração de Filosofia e Teoria Geral doDireito, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP). É assessora de projetos do Instituto São Paulo Contra a Violência. E-mail: carolina@spcv.org.br

2 Para ilustrar a afirmação de que a segurança pública e a repressão à criminalidade passaram a ser uma importante preocupação do governo, vale mencionar o crescimento da despesa com as Secretarias da Segurança Pública e da Administração Penitenciária, ambas do Estado de São Paulo: em 1998, a despesa total com essas duas secretarias representava 8,25% da despesa total do Estado, em 2004 essa porcentagem passou para 19, 73% (segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública). Outro indicador importante é o aumento da população prisional, que, no Estado de São Paulo, passou de 55.021 em dezembro de 1994 para 130.885 em junho de 2004 (dados da Secretaria de Administração Penitenciária).

3 Ainda que seja possível observar a diminuição de alguns índices de criminalidade, a sensação de
insegurança persiste, assim como as taxas de violência e criminalidade de uma forma geral continuam elevadas.

4 JESHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho Penal, Parte General, V.I. Barcelona: Bosch, 1981. p. 116 apud [SOUSA (2002, p. 150)].

5 É importante esclarecer que a passagem sobre as teorias da finalidade da pena e sobre prevenção concebidas pelo Direito Penal será feita de modo superficial, apenas para dar um panorama básico sobre o olhar do direito em relação à prevenção do crime.

6 Há variações em relação e esse conceito, no entanto, pretende-se aqui, como já mencionado, apresentar apenas seu perfil básico e não detalhar tais variações e as conseqüentes problemáticas acerca do conceito, uma vez que o objetivo do texto é apenas desenhar um panorama geral da idéia de prevenção elaborada pelo Direito Penal e confrontá-la com outras elaborações.

7 Uma visão bastante crítica da idéia de prevenção elaborada pelo Direito Penal: “A pena de prisão não é capaz de sequer intimidar aqueles que a conhecem de perto e já sofreram seus males (prevenção especial), quanto mais aqueles que a desconhecem ou a conhecem apenas por “ouvir dizer” (prevenção geral). Assim, tanto a prevenção especial como a prevenção geral, não passam, em verdade, de mera ficção jurídica. A maior demonstração de que a prevenção especial, sustentada pelas teorias utilitárias, não cumpre seu papel é justamente a elevação dos índices de reincidência. O mesmo ocorre em relação à prevenção geral, que é facilmente contestada pela elevação da criminalidade, apesar do endurecimento e rigorismo da legislação penal”. [YAROCHEWSKY( p. 292)]

8 “If the crime prevention debate is framed solely in terms of the symbolic labels of punishment versus prevention, policy choices may be made more on the basis of emotional appeal than on solid evidence of effectiveness.” [SHERMAN (1997, p. 33)].

9 “Schools cannot succeed without supportive families, families cannot succeed without supportive labor markets, labor markets cannot succeed without well-policed safe streets, and police cannot succeed without community participation in the labor market”. [SHERMAN (1997, p. 34)].

10 “Fator que aumenta a probabilidade de incidência ou os efeitos negativos de crimes ou violências, mas não determina a incidência ou os efeitos negativos de crimes e violências. Quanto maior a presença de fatores de risco, e menor a presença de fatores de proteção, maior a probabilidade de incidência e de efeitos negativos de crimes e violências”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

11 “Fator que reduz a probabilidade de incidência ou de efeitos negativos de crimes ou violências. Quanto maior a presença de fatores de proteção e menor a presença de fatores de risco, menor a probabilidade de incidência e de efeitos negativos de crimes e violências”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

12 “Condição de indivíduos, famílias, grupos e comunidades que os tornam mais suscetíveis de envolvimento com o crime e a violência e de vitimização, mesmo em situações de baixo risco”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

13 “Condição de indivíduos, famílias, grupos e comunidades que os tornam menos suscetíveis ao
envolvimento com o crime e à violência e de vitimização, mesmo em situações de alto risco.” [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

14 As definições dos três tipos de prevenção, primária, secundária e terciária, trazidas aqui, são totalmente baseadas na pesquisa Arquitetura Institucional do Sistema Único de Segurança Pública, elaborada em 2004, pelo Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública, por meio de um convênio com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O eixo temático “Prevenção do Crime e da Violência e Promoção da Segurança Pública no Brasil” foi elaborado por Paulo de Mesquita Neto e uma equipe de pesquisadores. As definições trazidas aqui estão nas páginas 367-370 e o material ainda não foi publicado.

15 As informações sobre Bogotá apresentadas aqui foram extraídas do texto “A redução do Crime em Bogotá: uma Década de Políticas de Segurança Cidadã”, elaborado por Maria Victoria Llorente e Ângela Rivas, do Programa Paz Pública do Centro de Estudios sobre Desarrollo Econômico (CEDE) da Universidad dos Andes, em fevereiro de 2004, para o Banco Mundial. Para outras informações sobre Bogotá, ver http://www.bogota.gov.co.


BIBLIOGRAFIA


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LLORENTE, Maria Victoria e RIVAS, Ângela. “A redução do Crime em Bogotá: uma
Década de Políticas de Segurança Cidadã”. Programa Paz Pública do Centro de Estudios
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