domingo, 18 de maio de 2008

21 NOTAS SOBRE A PROBLEMÁTICA DA SEGURANÇA PÚBLICA[1]

Luiz Eduardo Soares

(Visiting scholar de Columbia University e do Vera Institute of Justice, NY)

No vasto universo de questões ligadas à segurança pública[2], gostaria de destacar as que me parecem mais relevantes para o debate contemporâneo e de postular pontos de vista específicos para abordá-las:

(1) Contraste entre relevância social e investimento intelectual.

Antes de mais nada, é preciso atentar para a escandalosa –e, no entanto, negligenciada-- defasagem entre a relevância da segurança pública e a carência de estudos especializados, analíticos ou propositivos. Apesar de ocupar, sistematicamente, posição de destaque no ranking das preocupações sociais e de constituir um dos focos privilegiados da agenda pública, a segurança não tem sido tema de pesquisas e cursos de alto nível, no campo das ciências sociais. Há uma produção crescente, ainda que insuficiente, voltada para o diagnóstico analítico da violência e da criminalidade, mas uma ausência quase absoluta de trabalhos sobre políticas públicas de segurança. A ausência é tão significativa quanto o desdém que a academia, as instituições de pesquisa e as fundações de apoio à pesquisa devotam a esta ausência, eximindo-se de induzir interesses e esforços. As consequências têm sido graves: faltam acúmulo de conhecimentos especializados e massa crítica para o debate educativo, e quadros competentes não estão sendo formados. Assinale-se que a gestão de políticas públicas de segurança tem sido entregue, predominantemente, a militares, especialistas em direito e policiais, de um modo geral desprovidos de formação profissional especializada. Ao contrário do que seria desejável, a multidisciplinaridade não é praticada na formação das equipes gestoras. O frequente (ainda que, felizmente, não generalizável) despreparo dos gestores tem concorrido para a continuidade e a ampliação dos problemas, e tem contribuído para o reforço, na sociedade, de visões empobrecedoras, unilaterais e, por vezes, francamente negativas da matéria. O reforço decorre sobretudo da divulgação constante, pela mídia, das opiniões dos gestores a propósito do que fazem e da natureza do objeto sobre o qual supostamente incidiriam suas ações. O efeito da disseminação desses discursos na cultura cívica é, compreensivelmente, nefasto e nos afasta de um encaminhamento racional das questões pertinentes.

(2) Contraste entre dignidade tradicional e atual vulgarização negligente.

A contradição, no Brasil, entre a urgência dramática do problema da segurança pública e a desatenção dos cientistas sociais (e dos economistas) –e não só desses profissionais-- à questão das políticas públicas de segurança, revela, em certo sentido, um curioso desapreço pela tradição de nossas disciplinas, cuja matriz moderna é tributária de reflexões (propositivas e construtivas) sobre as condições em que se afirma e prospera a ordem pacífica e estável. O tema segurança perdeu, entre nós, a nobilidade que os pais fundadores –como Hobbes, Locke e Rousseau-- lhe atribuíam. Pode ser que a restituição teórica do prestígio perdido estimule pesquisas empíricas e estudos propositivos de que tanto necessitamos.

(3) Concentração no diagnóstico e abandono da prática (vista, tacitamente, como suja, baixa, menor), isto é, da discussão sobre políticas públicas.

Insisto na importância de uma distinção que me parece decisiva. A despeito de insuficiente, conforme assinalei acima, tem crescido a produção de trabalhos acadêmicos sobre violência e criminalidade. No entanto, o foco não tem se alargado para incluir a especificidade das políticas públicas, seja através de exames comparativos, seja através de análises de caso. Menos ainda se observa um movimento intelectual em direção ao enfrentamento do desafio prático, isto é, à formulação de modelos de projetos e políticas, na área. Para que se tenha uma idéia da magnitude desse vazio e de suas consequências, basta imaginar o que ocorreria se houvesse um vazio equivalente no âmbito das questões relativas à economia. O país já teria vivido seu colapso terminal. Bem, talvez não estejamos tão longe da catástrofe, no campo da segurança pública –e todos intuímos, por óbvia, a contiguidade entre o desastre na segurança e a inviabilização da sociabilidade civilizada, no Brasil.

(4) Fixação irrefletida em uma retórica pseudo-explicativa, cujas consequências políticas são graves.

O foco unilateral no diagnóstico, combinado ao silêncio praticamente total sobre a questão das políticas públicas específicas, tem refletido e alimentado a visão corrente entre políticos de esquerda (apesar das dificuldades implicadas nessa classificação, ainda acredito em sua utilidade e pertinência, guardadas as qualificações e relativizações impostas pelo quadro internacional contemporâneo). Esses políticos e os segmentos da opinião pública que representam quase invariavelmente se recusam a enfrentar a segurança pública como um problema dotado de alguma especificidade, preferindo pensá-la como sintoma de causas e determinações estruturais, de natureza sócio-econômica. Derivam daí os remédios que sugerem aos governantes ou que buscam aplicar, uma vez no poder. Remédios, na melhor das hipóteses destinados a reduzir injustiças sociais e, portanto, a restringir, a médio e longo prazos, seus efeitos negativos, entre os quais a criminalidade. Não disputo a propriedade cognitiva da tese, ainda que ela seja controversa (exigindo mediações e contextualizações, assim como a discriminação entre as variáveis consideradas, particularmente a diferenciação dos tipos de crime submetidos à análise), até porque meu interesse, aqui, é chamar a atenção para o fato de que mesmo na hipótese positiva de que políticas sociais e econômicas exerçam significativo impacto redutor sobre as taxas de criminalidade, essa conclusão não justificaria a adoção unilateral dessa abordagem do desafio da segurança, isto é, não justificaria a omissão dos governos no campo específico das políticas de segurança. Finalmente, note-se que a negligência da esquerda de extração marxista a reconhecer a legitimidade intelectual e política da segurança pública, como tema prático e teórico, deriva, provavelmente, das concepções tradicionais do aparelho policial como instrumento do domínio de classe, cuja função se esgotaria quando a revolução eliminasse a propriedade privada dos meios de produção e cancelasse as diferenças de classe. Não é preciso dizer que a desatenção, nesse caso, é e foi a matriz tanto da impotência atual desses setores, diante dos desafios concretos no campo da segurança pública, quanto da incapacidade de pensar criticamente o processo de transição à idealizada sociedade sem classes, que envolve um regime político, a ditadura (do proletariado) e a atuação hiperbólica da polícia (política, a serviço do Estado). Observe-se que, nas sociedades do chamado socialismo real, a transição para a democracia trouxe problemas análogos aos vividos pelo Brasil, na área da segurança, e veio acompanhada, no plano intelectual, de uma idealização correspondente, ainda que inversa, à dos nossos marxistas: supunha-se que à emergência da democracia corresponderia a redução das tensões, a afirmação da solidariedade e o declínio da violência, em todas as suas formas.

(5) A tradição da denúncia.

No Brasil, desde a época da ditadura, as entidades da sociedade civil e os movimentos sociais sensíveis à questão dos direitos humanos têm exercido com coerência, firmeza e com a eficiência possível, suas responsabilidades críticas, mas não têm sido capazes de transcender a dimensão negativa, indo além da denúncia. Por outro lado, demonstrando uma limitação simétrica e inversa, os estudiosos do processo de transição política não atentaram, salvo honrosas e raríssimas exceções, para a descontinuidade entre a edificação institucional e legal da democracia e a continuidade das práticas brutais das polícias contra os segmentos mais pobres e politicamente fragilizados da população. Nesse sentido, a transição brasileira permanece incompleta. A prática da denúncia (em si mesma indispensável, ainda que insuficiente) parece funcionar como um contrapeso à miopia teórico-analítica de boa parte dos intérpretes de nossa história política recente, cujo discurso unilateral termina por legitimar a omissão das autoridades ante o arbítrio policial. Uns e outros nada dizem sobre o que fazer, que caminhos alternativos construir e como fazê-lo.

(6) O engessamento das reações defensivas das corporações.

A unilateralidade do discurso crítico e sua associação a governos abúlicos, na área da segurança pública, acabaram alimentando a instauração de um círculo vicioso, uma vez que setores da opinião pública e a maioria dos policiais passaram a associar defesa dos direitos humanos a posturas passivas e omissas diante da gravidade da escalada criminal. Daí às acusações contra os militantes dos direitos humanos como cúmplices dos criminosos foi um pulo. Em outras palavras, apesar do valor da miltância crítica e humanista (da qual me orgulho de participar, até hoje) e do esforço respeitável de alguns governos, no sentido de controlar a polícia e reduzir a brutalidade repressiva, o fato é que a ausência de políticas alternativas voltadas especificamente para a reforma das polícias e o aumento da eficiência do sistema de segurança concorreu para fortalecer as idéias negativas sobre soluções racionais e civilizadas, desacreditando –e isso é uma tragédia-- o discurso dos direitos humanos.

(7) O movimento pendular de nossa inépcia político-intelectual, no estado do Rio, é sintoma da incapacidade de lidar com o problema de forma persuasiva, minimamente eficiente e, portanto, capaz de tornar-se irreversível, permitindo o acúmulo de experiências positivas.

Eis, em resumo, o retrato de nossa história, no período pós-ditatorial: 1982, Brizola (discurso do respeito cidadão); 1986, Moreira Franco (discurso da força policial); 1990, Brizola (respeito); 1994, Marcello Alencar (força). Nesse quadro, o programa que ajudei a elaborar para o governador Garotinho colocaria seu governo, a meu juízo, se fosse realmente implantado, em uma posição singular. De todo modo, o resultado prático da dicotomia tem sido a oscilação contínua e radical da política fluminense. Refiro-me à dicotomia que opõe dois blocos: de um lado, os defensores dos direitos humanos, que sabem o que não querem (a violência policial), e os governantes bem intencionados mas abúlicos, que sabem o que não devem fazer (a chamada política do pé-na-porta, que era típica da ditadura) –nenhum dos dois sabe exatamente o que seria desejável, em termos positivos, e como produzir essa realidade alternativa desejável; de outro lado, estão os conservadores que sempre souberam o que querem (a liberdade para a polícia agir, independentemente de seus métodos), mas não se satisfazem com os resultados (descontrole crescente da situação, degradação das instituições policiais, aumento da criminalidade, revolta da população duplamente violentada –pela polícia e pelos criminosos). Houve um tempo em que lançar a polícia, como cães, contra os pobres, bastava, para submetê-los a um cerco sanitário e manter protegidas as classes médias e as elites. Já não basta. Por isso, até os conservadores que defendiam a brutalidade policial já começam a perceber que barbárie gera barbárie e que, nas condições brasileiras, ou haverá segurança para todos, ou não haverá para ninguém. Esse momento, portanto, parece propício (dados os fracassos à direita e à esquerda) à mudança de paradigma e à emergência de uma terceira via, que postulo, entre a passividade e o arbítrio: a combinação entre respeito aos direitos humanos e a eficiência policial, como ocorre em países que têm sido bem sucedidos no enfrentamento da questão.

(8) A indissociabilidade entre eficiência e respeito às leis e aos direitos humanos.

Não se trata de retórica demagógica ou de idealismo romântico. A ligação entre esses termos é inextricável, orgânica, necessária. A experiência internacional demonstrou que a polícia só pode ser eficiente se contar com a confiança da população, seja porque precisa de dados, denúncias, registros de ocorrência e orientações sobre as microdinâmicas cotidianas do crime, seja porque a segurança inclui uma importante dimensão subjetiva e intersubjetiva, para cuja experiência positiva é indispensável o reconhecimento da legitimidade e da confiabilidade (isto é, da previsibilidade) da polícia. Além disso, tecnicamente, o gradiente de uso da força não só constitui o método funcionalmente apropriado às ações policiais, como corresponde à aplicação prática dos direitos humanos, os quais incluem a legítima defesa.

(9) O que falta: dados-diagnóstico-planejamento-avaliação-correções de rota (monitoramento), gerando uma história (experiência analisável e saber acumulável).

O primeiro, determinante e, portanto, principal problema da segurança pública no Brasil e, possivelmente, no Brasil, a meu juízo, é de natureza gerencial, até porque nada mais será possível, nenhuma mudança se viabilizará, se não houver a criação de uma organização racional administrável, isto é, de um sistema, em cujo âmbito se torne possível controlar as agências institucionais pertinentes ao campo da segurança pública, assim como a formulação e implementação de políticas. Não há política de segurança, no Brasil, porque só há política havendo diagnóstico, para o qual são necessárias informações consistentes, dados qualificados, processados de forma rigorosa. No Brasil, as informações são precárias, desde a coleta até o processamento e a ordenação que lhes dá sentido. Portanto, os diagnósticos não podem ter maiores pretensões à consistência. O que inviabiliza o planejamento, na ausência do qual, inexistem condições para avaliações regulares. A falta de avaliação impede que o sistema aprenda com seus erros e os corrija, acumule racionalmente experiência e crie uma história.

(10) O que se deve fazer e se pode fazer, no campo específico da segurança, independente e paralelamente a tudo o mais que será essencial.

De meu ponto de vista, antes de mais nada é preciso reconhecer a necessidade de que se criem as condições para a formulação e a implantação de políticas públicas de segurança (quais e em que termos, veremos adiante, na tese 17). Mesmo que haja dissenso quanto às políticas a serem definidas, escolhidas e implementadas, pode-se buscar o consenso em torno dessa tese: a improvisação voluntarista, fragmentária e reativa, a que se costuma dar o nome de política de segurança, não merece esse título enganador e está condenada ao fracasso. Nossas chances de algum sucesso dependem de nossa capacidade de planejar e avaliar, o que, por sua vez, exige mudanças organizativas radicais.

(11) Políticas de segurança, afinal, fazem alguma diferença? (demografia, economia, sociedade e cultura).

Creio que sim, mas reconheço que qualquer posição, nessa matéria, é polêmica e que são necessárias qualificações para que a posição que defendo se sustente[3]. As pesquisas empíricas têm demonstrado que muitas variáveis podem desempenhar um papel significativo nas alterações das taxas de criminalidade, dependendo do crime a que nos referimos e dos contextos históricos em são perpetrados. Essas variáveis potencialmente significativas incluem, por exemplo, a presença dos jovens na composição demográfica, os índices de mobilidade social, os indicadores relativos à escolaridade, o acesso ao emprego, a disponibilidade de armas, as taxas de impunidade, o peso da socialização doméstica, as características culturais formadoras das identidades masculinas e dos valores. No entanto, políticas públicas de segurança, graus de eficiência policial e credibilidade das polícias também podem fazer diferença, dependendo do tipo de crime e das circunstâncias históricas e culturais. Aos céticos, eu lembraria o fato inegável de que, no Brasil, há cerca de 500 mil pessoas empregadas em serviços públicos de segurança. Trata-se de profissionais armados, equipados e dotados de certa autonomia para interpretar as leis e aplicá-las. Mesmo que as formas de organizá-los e fazê-los operar não exercesse qualquer impacto sobre as práticas dos criminosos, certamente produziria consequências sobre a própria contribuição dos policiais para o resultado agregado da produção criminal. Um exemplo: em 1999, no estado do Rio de Janeiro, a política que começamos a implantar reduziu em 35% as mortes provocadas por ações policiais, que deveriam ser computadas, até prova em contrário (isto é, até que se demonstre a legalidade e legitimidade do confronto armado), como crimes letais, potencialmente homicídios. Essa redução, indicativa do aumento de controle que se passou a exercer sobre as instituições policiais e suas operações, não implicou, por outro lado, diminuição da eficiência policial, segundo os indicadores disponíveis, como apreensão de armas (que, aliás, bateu todos recordes). Portanto, deduz-se que políticas de segurança podem ser relevantes, mesmo que só consigam produzir efeitos no âmbito do desempenho policial –poderia acrescentar aqui o exemplo complementar: a importância do controle das ações ostensivamente criminosas dos policiais corruptos, como os sequestros.

(12) Gênero e etnia: a violência doméstica.

Pelo menos no Rio de Janeiro (mas, certamente, não só aí) faz toda diferença, quando se discutem os temas vinculados à segurança pública, saber o gênero e a cor (ou a identidade étnica) dos atores sociais. As mulheres estão subrepresentadas na ponta da agência criminal, quando se trata de homicídios. Os negros, por sua vez, são mais vitimados por crimes letais do que os brancos. Os jovens, entre 17 e 25 anos, são os principais alvos[4]. Ou seja, são rapazes negros que estão morrendo em grandes quantidades. Por outro lado, as mulheres estão superrepresentadas na ponta da vitimização, quando se trata de lesões corporais, por exemplo, e são as principais vítimas de um fenômenos de muita gravidade, ainda que pouco estudado, no Brasil, e distante das preocupações dos governantes, dos secretários de segurança e da própria consciência popular: a violência doméstica. Os direitos de cidadania não podem valer, para as mulheres e as crianças, apenas fora de casa. É viável e urgente incluir esses temas na agenda do debate público, das pesquisas acadêmicas (com mais vigor do que tem ocorrido) e na pauta das políticas de segurança.

(13) O impacto do crime e da violência sobre a economia.

É comum associarmos criminalidade, violência e condições econômicas, pensando estas últimas como determinantes das primeiras, mas é menos frequente atentarmos para a direção inversa: as consequências econômicas da expansão do crime, sobretudo do crime violento, assim como de outras manifestações da violência social, como o comportamento agressivo no trânsito. No caso do Rio de Janeiro, os efeitos desastrosos sobre a economia são visíveis: além dos gastos públicos decorrentes da vitimização em grande escala, há, por exemplo, a depreciação do valor de terrenos e imóveis, o desestímulo ao turismo e o esvaziamento do mercado cultural. Essa abordagem pode ajudar a justificar, do ponto de vista da racionalidade estritamente econômica, o aumento dos investimentos públicos na segurança.

(14) Os dois Brasis: tirania do tráfico e despotismo policial são a linha divisória.

O dualismo há muito ficou demodé, na sociologia brasileira. Até mesmo a dicotomia forma e substância, na reflexão sobre a política, passou a ser desprezada como expressão tosca do “baixo-clero” intelectual, supostamente incapaz de reconhecer o valor intrínseco à institucionalidade democrática. Infelizmente, a descrição dicotômica, quase caricata, a meu ver, permanece válida: o Brasil, são dois e a polícia é o que os divide. Em várias falevas cariocas, por exemplo, a população sofre a tirania imposta pelos traficantes de drogas e armas, e é submetida ao despotismo dos maus policiais, sendo que os primeiros frequentemente são menos temidos do que os segundos, porque estes são imprevisíveis, enquanto aqueles agem segundo códigos explícitos (ainda que perversos e opressivos). O pior terror é aquele imposto pela incerteza sobre o comportamento do poder, porque a imprevisibilidade impede a aplicação de estratégias de sobrevivência, hipertrofiando os efeitos destrutivos da irracionalidade. As leis e os direitos da cidadania não regem a vida coletiva, em certas áreas do território nacional. As instituição não têm vigência universalista. A população pobre deseja ardentemente a presença polícia, desde que sua ação seja legal e respeitosa.

(15) A polícia é a manifestação mais tangível do Estado.

A centralidade da polícia parece que só os pobres enxergam (porque a vivem). Estamos longe de reconhecer a importância do papel do comportamento policial para a legitimidade das instituições democráticas. Poucos pesquisadores têm chamado a atenção para esse ponto. O policial uniformizado na esquina de um bairro pobre é a forma de presença mais visível do Estado e de suas instituições, para boa parte da população brasileira. Se ele ou ela comete crimes e não merece confiança, é o Estado que perde credibilidade, são as instituições públicas que se degradam.

(16) Qual a qualidade de nosso “sistema”?

No Rio de Janeiro, é sofrível. Quando se considera a produtividade da polícia civil, é quase a pior possível. Estamos próximo de zero: apenas 7,8% dos homicídios dolosos (atenção, trata-se de homicídios, não do conjunto dos delitos) são apurados em inquéritos considerados, pelo Ministério Público, suficientemente instruídos. 92,2% são recusados pelo MP, depois de dois anos de idas e vindas, entre a polícia civil e o MP (esse dados referem-se ao início da década de 90, mas tudo indica que continuam próximos da realidade –cf. Soares, 1996). Como os casos que chegam a julgamento não são necessariamente concluídos com a atribuição da pena e seu cumprimento, deduz-se que menos de 7,8% dos assassinos são punidos. Como se vê, essa não é uma taxa de produtividade policial, mas um índice de impunidade, que sugere um quadro de tácita cumplicidade. Esses dados recomendam prudência na derivação de conclusões com base na análise de censos penitenciários: o universo das penitenciárias não funciona nem como amostra adequada, pois tudo indica que as prisões efetuadas pelas polícias refletem enviezamentos importantes. Não é por acaso que o nível de subregistro, nos casos de roubos e furtos (excetuados veículos), gira em torno de 80%, na cidade do Rio (e estão próximos de 75%, na região sudeste, o que mostra que as deficiências não são monopólio carioca).

(17) O que fazer?

Proponho três linhas para orientar as mudanças: modernização (tecnológica –especialmente na área da chamada polícia técnica-- e gerencial, além de qualificação policial), moralização (controle externo e interno, além de indução positiva) e participação comunitária (via “centros de referência”, conselhos de áreas, etc...).

(18) A necessária integração sistêmica e o aperfeiçoamento democrático.

Não podemos esquecer que as agências de segurança pública são partes de um complexo institucional mais amplo, que inclui a polícia federal (responsável pelo contrabando de drogas), o exército (responsável pela circulação de armas, no país), o aparelho judiciário (que permanece incapaz de reagir com presteza e equidade) e o sistema penal (que é problema, não solução, tornando urgente a ampliação da abrangência das penas alternativas à privação de liberdade). Um programa ambicioso de reforma teria de considerar todas essas unidades e suas múltiplas interfaces.

(19) Reformas constitucionais.

Ainda que não devamos cruzar os braços à espera de alterações constitucionais, pois há muito a fazer nos marcos da legalidade vigente, é preciso questionar nosso modelo institucional, na área da segurança. Parece-me urgente a unificação entre as polícias civil e militar e a reorganização sob regime civil, o que corresponderia à desmilitarização da segurança pública. Decisivo na superação de nossa esquizofrenia institucional é a integração do ciclo do trabalho de polícia. Nos Estados Unidos, por exemplo, há cerca de 19 mil departamentos de polícia e a pluralidade não tem significado dificuldades, porque todos eles cumprem o ciclo completo: prevenção, investigação e repressão; funções ostensivas e funções judiciárias. A unidade do ciclo é o que importa. As baixas taxas de apuração de crimes e os problemas no trânsito entre a polícia militar, a civil, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça, deixam clara a necessidade de revisão de nosso modelo segmentar, que transfere excessiva autonomia aos delegados e duplica as tarefas de investigação, ao distinguir o inquérito policial do processo criminal. O Juizado de instrução ou soluções análogas deveriam ser contempladas.

(20) A dimensão simbólico-afetiva, os governos e a mídia.

A mídia cumpre um papel fundamental na formação das percepções coletivas sobre risco e insegurança. Mas é claro que não o faz independentemente das tragédias que se acumulam e banalizam. Ou seja, a mídia não pode ser culpada por retratar (ainda que por um viés próprio e eventualmente interessado) as circunstâncias propiciatórias da intranquilidade coletiva. A meu juízo, enganam-se os que discutem violência na mídia focalizando a ficção, cujo papel pode muito bem ser o oposto do que se supõe (como sugere Bruno Bettelheim, em seu estudo clássico sobre o caráter positivo, para a formação psíquica das crianças, da violência dos contos de fada[5]). De todo modo, as pesquisas a respeito são inconclusivas ou controversas. O ponto mais relevante, creio, são os telejornais. Não advogo nenhuma forma de censura. Considero, isto sim, que os governantes não têm sabido relacionar-se adequadamente com a opinião pública e têm lidado mal com a mídia, quando o tema é a segurança. A postura oficial quase invariavelmente é defensiva, envolvendo a racionalização dos dramas cotidianos e o emprego de linguagens pretensamente objetivas e analítico-estatísticas, inteiramente impertinentes, considerando-se a incomensurabilidade de cada vida humana, a impropriedade de qualquer minimização da morte e a necessidade coletiva do luto. A defensividade pseudo-racionalizante dos governantes é o ingrediente que torna explosiva a superexposição da insegurança na mídia[6].

(21) A hiper-politização predatória.

Como a segurança pública tornou-se preocupação dominante na sociedade, valorizou-se, excepcionalmente, como issue político, o que tem estimulado uma competição predatória não apenas nociva para o interesse público (pois negligencia a substância da questão e o debate construtivo) como inviabilizadora de avanços concretos. Qualquer avanço consistente, nessa matéria, exigirá longa maturação, o que é incompatível com o tempo da política eleitoral, que requer resultados rápidos e debilita quem se dispuser a arriscar um equilíbrio precário (derivado da inércia e de pactos fáusticos) em nome da mudança real, cujo processo envolve riscos de desestabilização provisória. Os únicos antídotos seriam o estabelecimento de uma coalisão política ampla, capaz de dar sustentação a um esforço comum de resolução do problema, ou a expansão da consciência popular sobre a necessidade das mudanças, quaisquer que sejam os seus custos passageiros. Lamentavelmente, estamos muito longe de ambas as hipóteses.

[1] Essas teses são discutidas extensamente ao longo de Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Soares, LE – 2000. São Paulo: Companhia das Letras).

[2] Vou me permitir alguma liberdade conceitual, para não engessar inutilmente a reflexão, cujos pontos principais prescindem, nesse momento, da elucidação de noções como a da própria “segurança pública”. Para os propósitos do presente ensaio, posso tomá-la em seu signficado ordinário. Se nos detivéssemos na história e na análise de suas matrizes teóricas, teríamos de retornar, pelo menos, à problemática hobbesiana, em que ordem pacífica sob a autoridade legítima do Estado --condição da sociabilidade razoavelmente cooperativa e da equidade contratual-- corresponde à estabilização das expectativas. Nesse sentido, a segurança pública democrática seria o tipo ideal regulatório de um processo coletivo que, mesmo animado pelo movimento imprevisível da liberdade e dos “efeitos de composição”, se orienta pela profecia autorrealizada da reprodução das condições apropriadas à celebração do contrato includente em bases igualitárias, isto é, celebrado entre agentes que se portam como cidadãos, regidos pelo princípio da equidade, cujas paixões e interesses são disciplinados pelo reconhecimento das virtudes pragmáticas da coerção social, concentrada no Estado, como detentor monopolista dos meios da violência legítima (cf. Soares, LE – 1995 – A Invenção do Sujeito Universal; Hobbes e a Política como Experiência Dramática do Sentido. Campinas: Ed. UNICAMP).

[3] Um livro importante e recente que aponta nessa mesma direção é The Crime Drop in America, organizado por Alfred Blumstein e Joel Wallman, e publicado pela Cambridge University Press, em 2000.
[4] Vide Soares, Luiz Eduardo (com colaboradores): Violência e Política no Rio de Janeiro. RJ: Relume Dumará, 1996.

[5] Refiro-me ao livro Psicanálise dos Contos de Fada. Editora ....

[6] Procuro demonstrar essa tese em Meu Casaco de General, op.cit.

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