terça-feira, 15 de julho de 2008

15/07/2008 - JORNAL DE BRASILIA - DF

Alerta para as áreas nobres
Joana Wightman
A qualidade de vida e a segurança nas ruas podem deixar de ser os grandes atrativos para aqueles que optaram viver no Distrito Federal. Em balanço publicado, ontem, pela Secretaria de Segurança Pública no Diário Oficial do DF, é possível perceber o crescimento da violência na região. Nos três primeiros meses deste ano, houve um aumento de cerca de 25% no número de chamadas atendidas pela Polícia Militar. O que mais chama atenção é que áreas nobres como o Lago Sul e o Jardim Botânico, se tornaram alvos da criminalidade.
As duas regiões administrativas tiveram um aumento de mais 40% no número de chamadas atendidas pela PM em relação ao mesmo período do ano passado. Logo em seguida no ranking, aparecem, empatados,Ceilândia, Guará, Parkway (40%) e São Sebastião (39%).
A situação em Sobradinho II, maior região em número de condomínios do DF, também é preocupante. No primeiro trimestre, a cidade registrou um aumento de 40% no registro de crimes registrados pela Polícia Civil, ficando à frente de áreas como o Setor de Indústria e Abastecimento (SIA) (20%) e Lago Sul (17%).
Atualmente, cerca de 20 mil policiais, entre civis e militares,fazem a segurança do DF. Desse total, 15 mil são PMs e 5,4 mil policiais civis. No primeiro trimestre do ano, foram registradas 75,7 mil ocorrências pela Polícia Civil e quase 10 mil delas foram solucionadas. Nesse período, cerca de 2 mil criminosos foram presos em flagrante e 435 armas foram apreendidas.
A Asa Sul e a Asa Norte foram os locais onde houve maior redução na quantidade de crimes: 21%. Para o comandante da Polícia Militar,coronel Luís Fonseca, uma das estratégias de sucesso no policiamento foi a presença da dupla Cosme e Damião, dois PMs que fazem a segurança nas entre-quadras do Plano Piloto. "Estamos trabalhando em cima das estatísticas dos delitos e dos locais com maior concentração de crimes. Assim conseguimos rea-locar os policiais e dinamizar o trabalho da PM", destacou.
Segundo Fonseca, houve um reforço da ação da PM para coibir roubos e furtos a comércios e residências. Para o coronel, no comércio, a alta rotatividade de funcionários, principalmente em postos de gasolina, pode facilitar a ação de criminosos com informações sobre a rotina do estabelecimento comercial. O mesmo vale para a área residencial. "Em Brasília, é assustadora a quantidade de assaltos e roubos a casas", enfatiza o especialista em Segurança Pública da Universidade de Brasília (UnB), Antônio Flávio Testa.
O professor destaca que a polícia privilegia os bairros nobres e que, nesses locais, existem mais investimentos em infra-es-trutura para a segurança pública. "Por mais que o governo insista em enfatizar que houve um reforço do policiamento em outras cidades do DF, sabemos que, na prática, as regiões do Plano Piloto e Lago Sul dispõem de mais policiamento e oferecem melhor segurança", avaliou.

Falta de análise de dados

Para o especialista em Segurança Pública da UnB, Antônio FlávioTesta, os dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública se baseiam apenas em registros de ocorrências e não existe uma análise pormenorizada que possa indicar as causas do crescimento ou diminuição no número de delitos.
Segundo Testa, os dois principais problemas do DF que contribuem para aumento da criminalidade são o grande mercado consumidor de drogas e o crescimento da indústria do "desmonte", que funciona abastecida por roubos e furtos de celulares, carros e aparelhos eletrônicos. O professor observou ainda que o crescimento da economia informal, como a indústria da pirataria, favorece outros mercados clandestinos como de armas e drogas.
Para o professor, os problemas nas políticas de segurança pública estão concentrados na incapacidade de prevenção e investigação da polícia. "O Estado não se faz presente e por isso há um crescimento do comportamento criminoso", concluiu. Como exemplo, o especialista destaca a situação do Entorno do DF, que sofre com o crescente aumentodos índices de criminalidade. "É uma região que está totalmente abandonada e se abastece de roubos praticados no DF", apontou. Para ele, a capital vem se tornando um filão de mercado para os criminosos de outras regiões. "A marginalidade vem "trabalhar" aqui (em Brasília)", acrescentou.
■ Migração
Segundo o especialista, sempre que há uma diminuição na quantidade de crimes é sinal que a marginalidade migrou para outras regiões. "A criminalidade não desaparece. O crime vai para aonde tem cliente", analisou. O professor ressaltou ainda que é impossível que as polícias Militar e Civil consigam cobrir todo o território do DF."O policiamento inibe, mas não acaba com o crime", analisou.
Para o professor, o Brasil ainda está engatinhando em ações de seguranças pública, mas já apresenta alguns avanços. Entre eles, o balanço da criminalidade divulgado ontem. "Antes não se fazia isso, já é um grande avanço. Porém, acho difícil que a Secretaria de SegurançaPública faça um balanço com dados objetivos e fidedignos", avaliou.
O secretário de Segurança Pública, general Cândido Vargas, foi procurado pela reportagem, mas, segundo sua Assessoria de Imprensa,ele não irá comentar o balanço divulgado no Diário Oficial do DF. O órgão afirmou que os dados poderiam ser repercutidos com a direção da Polícia Civil. No entanto, o diretor-geral adjunto da Polícia Civil,João Monteiro Neto, informou, também por meio da Assessoria deImprensa, que não abordaria os resultados do balanço porque"desconhecia a metodologia empregada no estudo e, por isso, não poderia analisar os dados com precisão".

Mais infra-estrutura nas ruas

O comandante da Polícia Militar, coronel Luís Fonseca, avaliou que o aumento na frota de veículos da PM permitiu que houvesse um maior número de atendimento às chamadas emergenciais. "A PM está mais presente nas ruas e com maior quantidade de viaturas. Nossa idéia é minimizar a onda de furtos que cresceu ultimamente", revelou o comandante. Até março deste ano a PM contava com 1.464 viaturas.
Fonseca explicou que muitos atendimentos realizados pela corporação não chegam a se configurar em ocorrências, por isso há diferença nos números da PM e da Polícia Civil."Muitas vezes não há registro do caso e o problema é resolvido no local. E ainda existem muitas ligações que são trotes", apontou ocoronel. Ele ressaltou, porém, que nos casos de brigas entre marido e mulher, não existe mais a possibilidade de acordo no local, por causada Lei Maria da Penha.
Para Antônio Flávio Testa, os dados sobre a violência doméstica ainda estão mascarados. Segundo ele, existem altos índices de agressões em bairros nobres como Lago Sul e Sudoeste, mas as pessoas de classes mais altas ainda se sentem inibidas de registrar ocorrências desse tipo.
"Entre as pessoas mais ricas existe vergonha e medo de se expor nessas situações", avaliou o professor. Para ele, os estudos apresentados pela SSP ainda são incipientes para que se avalie um quadro geral do crescimento da violência no DF. Segundo o professor,os índices de criminalidade podem ganhar reforço com a expansão urbanana capital. "Existem estimativas que apontam que dentro de 15 anos a população do DF pode chegar a 10 milhões de habitantes. Acredito que possamos chegar à metade desse total. Brasília vai crescer muito e com isso haverá um aumento da criminalidade e maior presença do crime organizado", destacou.
A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Segurança Pública disse que os dados são um mero "extrato" das operações realizadas no primeiro trimestre e que as informações não costumam ser questionadas.A SSP disse ainda que não dispunha de técnicos para explicar as informações divulgadas.

domingo, 18 de maio de 2008

A PREVENÇÃO DO CRIME E DA VIOLÊNCIA COMO DIMENSÃO
NECESSÁRIA DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA.


(Outubro de 2004)

Carolina de Mattos Ricardo 1

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é situar o debate sobre prevenção da violência e criminalidade no contexto de uma política de segurança pública. Pretende-se aqui afirmar que para reduzir a violência e a criminalidade, não bastam as ações de endurecimento do controle do crime e da violência, mas que é preciso pôr ênfase nas ações preventivas,concebendo esse tipo de ação para além da esfera do Direito Penal.

Inicialmente, o artigo contextualiza, de forma breve, o problema da violência e criminalidade, particularmente na década de 90, no Brasil, apontando alguns índices de criminalidade e indicando a principal tendência das respostas governamentais dadas ao problema, bem como o tipo de reivindicação que começou a ser feita pela população reproduzindo o medo do crime e o discurso por endurecimento das políticas de controle que começou a pautar o debate. Para então, mostrar que o caminho de endurecimento das políticas parece não ter sido suficiente para resolver o problema ou ao menos amenizá-lo significativamente.

Em seguida, o artigo aponta uma primeira possibilidade de prevenção do crime e da violência elaborada pelo Direito Penal, mas indica que apenas essa elaboração também parece não ser suficiente para lidar com o problema, uma vez que tem sido muito difícil conciliar a elaboração teórica do Direito Penal sobre prevenção do crime e da violência com a realidade empírica e avaliar esse possível “resultado preventivo”, bem como porque essa resposta preventiva dada pelo Direito Penal encontra-se na chave da própria pena, o que, por si só, já é complicado se o que se pretende é pensar prevenção de uma forma mais abrangente e eficiente, capaz de torná-la parte prioritária de uma política de segurança
pública.

Por fim, o artigo apresenta uma concepção alternativa de prevenção da violência e criminalidade, baseada, sobretudo em resultados preventivos, de violência e crimes evitados e na articulação de diferentes esferas e atores sociais, que inclui, inclusive as agências de controle: polícia, justiça criminal e administração penitenciária, ilustrando a idéia com o caso de Bogotá.

CONTEXTO DE CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA E DO MEDO DO CRIME E OS CAMINHOS DAS RESPOSTAS DADAS AO PROBLEMA

A década de noventa no Brasil foi marcada pelo crescimento nas taxas de criminalidade e violência. Em relação às taxas de homicídios por 100 mil habitantes, por exemplo, houve um crescimento de 26,4%, variando de 20,9 em 1991 para 28,4 em 2002 (tabela 1 anexa). Na região metropolitana de São Paulo, verificou-se um brutal crescimento nas taxas de roubo a mão armada por 100 mil habitantes, variando de 269,05 em 1981, para 562,63 em 1991 e para 879, 79 em 2002, ou seja, uma variação de 69,42% entre 1981 e 2002 (tabela 2 anexa).

Diante desse cenário a preocupação com a segurança pública passou a ocupar uma parte significativa do debate público, seja na mídia, nas esferas políticas federal, estadual e municipal, na sociedade civil ou ainda nos centros de pesquisa. O medo do crime e da violência passou a compor a realidade e o imaginário da coletividade que, a partir de experiências concretas ou não, passou a produzir e reproduzir o que Teresa Caldeira chamou de fala do crime. “As narrativas de crime, ao lidar com a desordem da experiência causada pelo crime (ou por um dos processos de ruptura que o crime simbolicamente expressa), produzem um certo tipo de significação. Essas narrativas são simplistas, intolerantes e marcadas por preconceitos e estereótipos. Elas contradizem o discurso e as iniciativas democráticas, exatamente os tipos de prática que a sociedade brasileira estava tentando consolidar quando o crime tornou-se a fala da cidade. Além disso, embora as discussões aguçadas da fala do crime reordenem de fato as experiências perturbadas pela violência, não são eficazes para controlar a violência. Ao contrário, elas reproduzem o medo e a violência.” [CALDEIRA (2000, pp.30/40)].

Assim, além do efetivo crescimento da criminalidade, verificou-se e o crescimento do medo do crime ou da sensação de insegurança. Diante desse quadro começaram a surgir demandas por mais segurança e por maior repressão à criminalidade, ainda que de forma pouco democrática. Discursos a favor de aumento de penas, da redução da maioridade penal, da criminalização de um maior números de conduta, de uma polícia mais dura e de prisão sem direitos passaram a compor significativamente o discurso público sobre o tema.

No entanto, ao mesmo tempo em que essas demandas foram surgindo, foi ficando claro que a simples repressão à criminalidade e violência não era suficiente para lidar com a complexidade do problema. O aumento de penas e restrição de benefícios para tipos específicos de crime, o aumento do efetivo policial e a construção de mais presídios(2) não foram suficientes para conter a criminalidade(3). A partir daí, uma forma alternativa de lidar com o problema, com propostas voltadas para possíveis causas, fatores de risco e de proteção e para problemas específicos, e que envolvesse diferentes setores do poder público, da sociedade civil, de centros de pesquisa e de organizações internacionais foi sendo desenhada e a idéia de prevenção da violência e da criminalidade foi se constituindo.

O professor Agustín Carrillo, analisando a situação do México em relação à legislação em matéria de prevenção delitiva na década de 90, trás uma série de reflexões e apontamentos que será útil para nossa reflexão em relação à realidade brasileira, uma vez que ambas apresentam uma séria de similaridades. O aumento da violência e da criminalidade significa o aumento de conflitos sociais. Na análise do fenômeno da violência e da criminalidade, não basta o levantamento sobre as violações à lei, mas é necessária uma análise de fatores culturais, sociais e políticos. Esse diagnóstico mais profundo e complexo do fenômeno exige respostas e alternativas também complexas. Nas palavras de Agustín Carrillo: “La comprensión de los conflictos sociales y de sus consecuencias requiere de investigaciones con conceptos diferentes de los de la dogmática jurídica y el derecho. Sólo así será posible solucionar el conflicto social y contener SUS síntomas. Conviene concentrarse en la prevención de los conflictos sociales y en La urgencia de establecer medidas necesarias y suficientes para que no se repitan, sanear el ambiente social con decisiones y acciones tendientes a la desaparición de las causas que los producen y simultáneamente atacar los síntomas”. [CARRILLO (2002, p.40)].

Fica claro, portanto, que políticas de segurança pública devem considerar duas formas de lidar com o problema da violência e da criminalidade: uma que passa pela aplicação da lei penal e que envolve as agências de controle: polícia, justiça criminal e administração penitenciária, e outra que não envolve a aplicação da lei penal. As políticas de segurança pública devem se concentrar nas causas e nos sintomas da criminalidade e violência, simultaneamente.

Políticas de segurança pública não podem se reduzir a respostas pontuais para demandas apaixonadas por combate à criminalidade e não podem se reduzir a alterações legislativas e de endurecimento das ações das agências de controle de violência, mas devem incorporar, principalmente a idéia de prevenção da violência.

A PREVENÇÃO POSSÍVEL NO DIREITO PENAL

A idéia de prevenção no Direito Penal surgiu com as teorias relativas sobre a finalidade da pena, que, ao contrário da teoria absoluta que atribuía uma finalidade retributiva à pena, atribuíam à pena a função de proteção da sociedade por meio da prevenção possível dos ilícitos. “Los fundamentos ideológicos de las teorias relativas están constituídos por las teorias políticas humanitárias de la Ilustración, por la inclinación a La explicación científica causal del comportamiento humano, por la fe em la possibilidad de educar a las personas, inclusive las adultas, a través de uma adecuada intervención sociopedagógica y por el escepticismo frente a todos los intentos de explicar metafisicamente los problemas de la vida social. Em las teorias relativas coinciden, por tanto, ideas humanitárias, sociales, racionales y utilitárias”.(4)

Para o Direito Penal, há duas formas possíveis de prevenção: a prevenção geral e a prevenção especial, e ambas dividem-se em positiva e negativa(5). O conceito de prevenção geral negativa funda-se na idéia de intimidação. A pena previne a prática de delitos na coletividade, na medida que coage psicologicamente os indivíduos que desistem de praticar o crime. Haveria nesse caso a intimidação pela simples previsão legal de uma sanção.

O conceito(6) de prevenção geral positiva funda-se na idéia de exemplaridade, ou seja, na idéia de que a norma penal irradia efeitos positivos na medida que incentiva e fortalece a confiança normativa. A pena se legitima no reforço geral da consciência jurídica da norma. Haveria três efeitos principais da aplicação da pena fundada na prevenção geral positiva: aprendizagem (reforça e recorda as regras com a aplicação da pena); confiança (com imposição da norma pela pena); e a pacificação social (restabelecimento da paz jurídica com a intervenção estatal).

A prevenção especial difere fundamentalmente da prevenção geral (positiva ou negativa), pois atua no agente do ato ilícito e não na coletividade como um todo, deixando de ser uma abstração para tornar-se concreta, ao menos para aquele ao qual a pena é imputada.

A prevenção especial negativa funda-se na idéia de intimidação a partir da neutralização do apenado, que fica fora de circulação e percebe que sua ação tem uma conseqüência jurídica, o que evitaria o cometimento de novos ilícitos penais. Já a prevenção especial positiva, funda-se na idéia de ressocialização buscando reintegrar o agente do ilícito à sociedade.

A prevenção do crime (geral ou especial) concebida pelo Direito Penal relaciona-se fundamentalmente com a sanção. Essa concepção, no entanto, trás algumas contradições. Para validar empiricamente a idéia de prevenção elaborada pelas teorias relativas, seria preciso analisar o grau de reincidência, que deveria ser muito baixo ou quase nulo, e o comportamento das pessoas em relação às previsões legais, ou seja, seria preciso investigar se as pessoas, de fato, deixam de cometer crimes em decorrência da pena prevista.

No entanto, tal avaliação é muito complicada e não é feita na prática. Os índices de reincidência são altos, embora não haja um acompanhamento sistemático e organizado que permita dimensionar a reincidência para os diferentes tipos de crimes e respectivas penas que possibilite analisar o potencial real da prevenção especial(7). O discurso da prevenção baseada apenas na sanção passa, então, a ser questionado. Nas palavras do professor Agustín Carrillo: “El propósito de la prevención delictiva, de acuerdo com este enfoque, sería desalentar, por médio del efecto motivador de la representación de la sanción o por el valor de los bienes protegidos con las obligaciones impuestas, la conducta tipificada em la ley penal. Se trata de motivar cierta conducta con la representación del castigo o con La bondad del madato. La tradición en la teoría del derecho, y en particular en derecho penal, ha sido la de considerar ese sistema normativo como una técnica específica de control social, mediante la cual se pretende lograr los objetivos determinados por los órganos estatales, con la amenaza de la sanción y de la aplicación de la misma cuando se presenta la conducta opuesta a la deseada por las autoridades estatales o por el contenido valioso de las normas jurídicas. Esta técnica de control social es preventiva en esos términos . Las teorías sobre la prevención en sus diferentes expresiones y desarrollos durante largo tiempo se apegaron a esta tradición jurídica hasta llegar a justificar la pena de muerte” [CARRILLO (2002, pp. 42/32)].

É, portanto, necessário deslocar o conceito de prevenção do crime para outras esferas que não se relacionem, necessariamente, com a aplicação da lei penal. A prevenção da criminalidade e da violência deve se dar em esferas múltiplas que dialoguem. Nas esferas das políticas públicas, de programas sociais focados e até mesmo de programas que envolvam as agências de controle da violência: polícia, justiça criminal e administração penitenciária.


CONCEPÇÃO ALTERNATIVA DE PREVENÇÃO DO CRIME E DA VIOLÊNCIA


Diante da constatação de que os índices de criminalidade e violência cresceram consideravelmente na década de noventa, de que cresceu também o medo e a fala do crime, bem como a sensação de insegurança, de que, paralelamente, houve um reforço na ação da aplicação da lei penal pelo Estado através de medidas mais repressivas como aumento de prisões, aumento de efetivo policial e das penas, mas que o problema da violência e criminalidade continua sendo central, surge a necessidade de trabalhar com o problema a partir de uma outra perspectiva: de prevenção. Contudo, a possibilidade de prevenção do crime e da violência elaborada no âmbito do Direito Penal, não dá conta de efetivamente prevenir a criminalidade e a violência. É preciso, portanto, apresentar uma alternativa de prevenção que seja aplicável na prática e que atinja a complexidade do problema.

A prevenção do crime e da violência proposta aqui deve ser concebida na lógica de resultados e sua concepção passa pelo diálogo com outras áreas do conhecimento, em especial a da saúde pública. Uma ação é preventiva, na medida que com ela atinge-se determinado resultado, ou seja, evita-se um ato violento que, sem essa ação preventiva, teria ocorrido. A ação preventiva pode incidir na redução de fatores de risco de violência e criminalidade ou no aumento ou reforço de fatores de proteção. A lógica de resultados com o objetivo de reduzir a incidência e o impacto de crimes e violências na sociedade que rege a prevenção aqui proposta é importante para afastar a idéia de prevenção da simbologia prevenção versus repressão, uma vez que esse debate, falso, acaba por dificultar a efetividade das medidas(8). Para viabilizar essa prevenção é preciso ter objetivos definidos claramente, bem como considerar as características específicas dos crimes e violências que se pretende evitar e das comunidades em que estes crimes e violências acontecem.

Além disso, a prevenção do crime deve ser feita de forma articulada entre as diferentes áreas e atores sociais: saúde, educação, trabalho, justiça, polícia, administração penitenciária, mídia, sociedade civil, setor privado(9).

O foco em fatores de risco(10) e/ou de proteção(11) é importante para a diminuição da vulnerabilidade(12) a crimes e violências e/ou para o aumento da resiliência13 a crimes e violências. Segundo o professor Carrillo: “La detección de los factores de riesgo se logra com La elaboración y aplicación de modelos que contengan indicadores sobre ambientes, espacios, tiempos, personas, actividades, actitudes, formaciones, etc., cuya presencia facilita, tolera o motiva actitudes o condiciones de riesgo de los hechos que se pretende evitar” [CARRILLO (2002, p. 46)].

Assim, tanto para trabalhar com fatores de risco como com fatores de proteção, é necessário realizar um bom planejamento, com a elaboração de um diagnóstico preciso do problema no qual se vai atuar, eleger as estratégias relacionadas com a solução para o problema diagnosticado, implementá-las e monitorar e avaliar seus resultados. Sem esses quatro passos, fica muito difícil avaliar se um programa de prevenção do crime e da violência deu resultados ou não. Com essa metodologia é possível até avaliar os impactos das medidas preventivas puramente legislativas proposta pelo Direito Penal (ainda que não seja esse o tipo de “prevenção ideal” proposto aqui).

Há três tipos de prevenção que podem produzir bons resultados em relação ao crime e à violência. Os três tipos(14) podem ser utilizados conjuntamente ou isoladamente, dependendo do problema com o qual se vai lidar.

A prevenção primária é composta por ações dirigidas ao meio ambiente físico e/ou social, com foco prioritário nos fatores de risco e/ou de proteção no meio ambiente urbano, no qual ocorre a criminalidade e a violência. A prevenção primária pode incluir ações que implicam mudanças mais abrangentes, na estrutura da sociedade ou comunidade, visando a reduzir a pré-disposição para a prática de crimes e violências na sociedade (prevenção social) ou pode incluir ações que implicam mudanças mais restritas e pontuais, nas áreas ou situações em que ocorrem os crimes e violências, visando a reduzir as oportunidades para a prática de crimes e violências na sociedade (prevenção situacional).

Ampliação dos serviços de saúde direcionados a famílias com filhos recém nascidos, ampliação das oportunidades de educação e trabalho na comunidade, por exemplo, são ações típicas de prevenção social. Limitação e controle do uso de armas, modificação de horários e locais de atividades econômicas, sociais e culturais e aumento da vigilância, são ações típicas de prevenção situacional.

A prevenção secundária é composta por ações dirigidas a pessoas e grupos mais suscetíveis de praticar ou sofrer crimes e violências e aos fatores que contribuem para sua vulnerabilidade e/ou resiliência, visando a evitar o seu envolvimento com o crime e a violência ou limitar os danos causados pelo seu envolvimento com o crime e a violência ou ainda a pessoas e grupos mais suscetíveis de serem vítimas de crimes e violências, visando a evitar ou a limitar os danos causados pela sua vitimização. Ações de prevenção secundária são freqüentemente dirigidas aos jovens e adolescentes, e a membros de grupos vulneráveis e/ou em situação de risco, inclusive crianças, mulheres e idosos em casos de violência doméstica ou intra familiar, mulheres em casos de violência de gênero, e afro descendentes em casos de violência contra minorias.

A prevenção terciária é composta por ações dirigidas a pessoas que já praticaram crimes e violências, visando a evitar a reincidência e a promover o seu tratamento, reabilitação e reintegração familiar, profissional e social, bem como a pessoas que já foram vítimas de crimes e violências, visando a evitar a repetição da vitimização e a promover o seu tratamento, reabilitação e reintegração familiar.

A prevenção do crime e da violência pode ser realizada por distribuição de ações em algumas áreas temáticas específicas, como comunidade, família, escola, trabalho e geração de renda, polícia, justiça criminal, sistema prisional e saúde.

Para ilustrar a possibilidade dessa concepção alternativa de prevenção, será apresentado brevemente o caso de Bogotá(15). A cidade de Bogotá, na Colômbia, alcançou uma significativa redução dos índices de criminalidade e violência. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu de 80 em 1993, para 28 em 2002, além disso, o número de acidentes de trânsito foi reduzido à metade entre os anos de 1985 e 2002. A queda nesses índices foi acompanhada pela tendência decrescente nas pesquisas de vitimização e de avaliação da sensação de insegurança, bem como da melhoria de alguns outros indicadores de educação e saneamento básico.

Para implementar uma década de políticas de segurança, passando por quatro gestões, a estratégia utilizada foi a incorporação da prevenção do crime e da violência como dimensão prioritária na política de segurança pública. Nesse período, houve manutenção e continuidade das políticas mesmo com as mudanças de gestão em um processo em que as autoridades civis e locais assumiram a liderança nas questões de segurança pública.

Foi realizado um preciso diagnóstico sobre os principais problemas relativos à segurança pública e foi constatado que os homicídios por motivos banais (álcool e armas de fogo) e intolerância em conjunto com a violência doméstica eram os dois principais problemas. Para lidar com os problemas foram definidos três enfoques prioritários de intervenção: promoção de uma cultura cidadã, com a inauguração de um novo discurso político e de uma nova forma de governar; a defesa do espaço público; e a melhoria da capacidade de controlar o delito e de sancionar infratores.

Para levar adiante a política de segurança pública nesses três focos de intervenção, foram definidas quatro estratégicas principais implementadas por meio de ações e programas específicos:

1.Desarmamento dos cidadãos e estímulo ao consumo responsável de bebidas alcoólicas: elaboração de um Plano de Desarmamento (controle das armas, legais e ilegais e restrição ao porte nos fins de semana), realização de campanhas pelo desarmamento, implementação da chamada “Lei Seca” (restrição do horário de funcionamento de estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas, primeiro até 1h, posteriormente flexibilizado para até às 3h), e realização de campanha de conscientização sobre álcool para jovens e álcool e trânsito.

2.Mecanismos alternativos de resolução de conflitos: criação de unidades de mediação e conciliação para resolução de conflitos cotidianos, implantação de delegacias de família como espaços de orientação para a família para prevenir e resolver conflitos e criação de instância de conciliação para a polícia administrativa.

3.Recuperação do espaço urbano: criação do Departamento Administrativo de Defesa do Espaço Público, obstáculos nas calçadas, horário para tirar o lixo, recuperação de eixos rodoviários, melhoria do transporte público, recuperação de eixos viários importantes e
intervenções em locais particularmente deteriorados.

4.Policiamento e melhoria da capacidade de sancionar o delito: fortalecimento da polícia metropolitana com avaliação de desempenho dos departamentos com base em indicadores, aumento do investimento na polícia metropolitana, criação de Centros de Atendimento Imediatos (CAIs), modernização do sistema de comunicação e frota automotiva, incentivo aos policiais e programas de capacitação (direito humanos, polícia comunitária, polícia judiciária, violência doméstica...), programa de polícia comunitária, zonas seguras (novo modelo de gestão de segurança no espaço público), reforma da cadeia distrital e construção da Unidade Permanente de Justiça (UPJ) e fortalecimento da investigação criminal com capacitação e padronização de procedimentos.

O contexto que possibilitou a implementação dessas ações foi fundamental e contou com uma série de atividades. Foram realizadas algumas reformas para institucionalizar os temas e prioridades relativos à segurança, foram criadas algumas instâncias para gerenciar e para coordenar as ações inter-institucionalmente (conselhos, comitês), houve um uso sistemático de espaços para avaliação das ações e para tomadas de decisões (como o Conselho Distrital de Segurança e o Comitê de Vigilância Epidemiológica de lesões de Causas Externas), foram criadas ferramentas para monitoramento (como o Observatório de Violência e Delinqüência e Sistema Unificado de Informação sobre Violência e Delinqüência), foram destinados recursos aos projetos e ações de segurança e houve a reestruturação do Fundo de Vigilância e Segurança e acesso a fontes financiamento internacional.

Esse exemplo de Bogotá, não é perfeito. É bem sabido, inclusive, que a Colômbia conta com índices altíssimos de violência e criminalidade. No entanto, ele deu certo para a redução significativa de alguns índices de violência em Bogotá, durante 1993 e 2002. O importante desse exemplo é que ele demonstra a convivência de ações de prevenção primária, secundária e terciária, em diferentes eixos temáticos, como comunidade, polícia, justiça criminal, educação e conscientização, saúde, ambiente urbano, entre outros. Outro ponto relevante é o diagnóstico, monitoramento e avaliação de resultados. Essa metodologia permite precisão e maior objetividade na intervenção, reduzindo o risco das “respostas apaixonadas”, possibilitando até que algumas medidas mais polêmicas de controle sejam efetuadas com respeito aos direitos e aos princípios democráticos e com controle social.

Nesse exemplo de Bogotá, foram verificadas algumas dificuldades e limitações, como a dificuldade na relação entre os níveis nacional e local, a dificuldade de realizar avaliações precisas sobre o impacto de cada ação nos índices de criminalidade, a dificuldade de determinar a eficiência das ações em termos de custo benefício, a realização de novos estudos/diagnósticos com resultados diferentes, como a ocorrência de mortes violentas concentradas em locais específicos, um maior número de mortes provocado por assaltos e ajustes de contas do que pela violência doméstica e abuso de álcool e a relação entre locais com alto índice de violência e presença da criminalidade organizada e a dificuldade de incorporar esses novos diagnósticos na política, a ausência de linhas básicas e de informação para construção de indicadores e o super-dimensionamento do impacto de algumas medidas.

Ainda assim, com essa série de limitações, a política foi exitosa e incorporou a prevenção da criminalidade e violência como dimensão estruturante. Nas palavras das autoras do estudo de caso de Bogotá: “O caso de Bogotá ilustra o desenvolvimento de uma política de segurança cidadã, na qual são aplicadas estratégias de diferente índole, como o controle de fatores de risco como o consumo de álcool e o porte de armas de fogo; o fortalecimento da capacidade policial na cidade, iniciativas relacionadas a mudanças culturais tendentes a aumentar o respeito pela vida e pela auto-regulação dos comportamentos cidadãos e intervenções no espaço urbano deteriorado, entre outras. Esta combinação de estratégias e seus resultados em termos de redução da criminalidade e da sensação de insegurança na cidade fazem com que esta experiência se transforme em um bom exemplo das diversas possibilidades existentes para enfrentar fenômenos de criminalidade urbana e, particularmente, de violência. Este caso também permite considerar a eficácia de algumas intervenções, assim como o processo de avaliação de resultados das políticas aplicadas”.[LLORENTE e RIVAS (2004, p. 2)]

Assim, acreditamos ser possível incorporar essa concepção mais abrangente de prevenção da criminalidade e violência como uma dimensão prioritária para uma política de segurança pública democrática e eficiente e que consiga começar a reverter efetivamente os índices de criminalidade e violência, bem como reverter a fala do medo e a sensação de insegurança.





1 A autora é advogada e cientista social. Mestranda na área de concentração de Filosofia e Teoria Geral doDireito, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP). É assessora de projetos do Instituto São Paulo Contra a Violência. E-mail: carolina@spcv.org.br

2 Para ilustrar a afirmação de que a segurança pública e a repressão à criminalidade passaram a ser uma importante preocupação do governo, vale mencionar o crescimento da despesa com as Secretarias da Segurança Pública e da Administração Penitenciária, ambas do Estado de São Paulo: em 1998, a despesa total com essas duas secretarias representava 8,25% da despesa total do Estado, em 2004 essa porcentagem passou para 19, 73% (segundo dados da própria Secretaria da Segurança Pública). Outro indicador importante é o aumento da população prisional, que, no Estado de São Paulo, passou de 55.021 em dezembro de 1994 para 130.885 em junho de 2004 (dados da Secretaria de Administração Penitenciária).

3 Ainda que seja possível observar a diminuição de alguns índices de criminalidade, a sensação de
insegurança persiste, assim como as taxas de violência e criminalidade de uma forma geral continuam elevadas.

4 JESHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho Penal, Parte General, V.I. Barcelona: Bosch, 1981. p. 116 apud [SOUSA (2002, p. 150)].

5 É importante esclarecer que a passagem sobre as teorias da finalidade da pena e sobre prevenção concebidas pelo Direito Penal será feita de modo superficial, apenas para dar um panorama básico sobre o olhar do direito em relação à prevenção do crime.

6 Há variações em relação e esse conceito, no entanto, pretende-se aqui, como já mencionado, apresentar apenas seu perfil básico e não detalhar tais variações e as conseqüentes problemáticas acerca do conceito, uma vez que o objetivo do texto é apenas desenhar um panorama geral da idéia de prevenção elaborada pelo Direito Penal e confrontá-la com outras elaborações.

7 Uma visão bastante crítica da idéia de prevenção elaborada pelo Direito Penal: “A pena de prisão não é capaz de sequer intimidar aqueles que a conhecem de perto e já sofreram seus males (prevenção especial), quanto mais aqueles que a desconhecem ou a conhecem apenas por “ouvir dizer” (prevenção geral). Assim, tanto a prevenção especial como a prevenção geral, não passam, em verdade, de mera ficção jurídica. A maior demonstração de que a prevenção especial, sustentada pelas teorias utilitárias, não cumpre seu papel é justamente a elevação dos índices de reincidência. O mesmo ocorre em relação à prevenção geral, que é facilmente contestada pela elevação da criminalidade, apesar do endurecimento e rigorismo da legislação penal”. [YAROCHEWSKY( p. 292)]

8 “If the crime prevention debate is framed solely in terms of the symbolic labels of punishment versus prevention, policy choices may be made more on the basis of emotional appeal than on solid evidence of effectiveness.” [SHERMAN (1997, p. 33)].

9 “Schools cannot succeed without supportive families, families cannot succeed without supportive labor markets, labor markets cannot succeed without well-policed safe streets, and police cannot succeed without community participation in the labor market”. [SHERMAN (1997, p. 34)].

10 “Fator que aumenta a probabilidade de incidência ou os efeitos negativos de crimes ou violências, mas não determina a incidência ou os efeitos negativos de crimes e violências. Quanto maior a presença de fatores de risco, e menor a presença de fatores de proteção, maior a probabilidade de incidência e de efeitos negativos de crimes e violências”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

11 “Fator que reduz a probabilidade de incidência ou de efeitos negativos de crimes ou violências. Quanto maior a presença de fatores de proteção e menor a presença de fatores de risco, menor a probabilidade de incidência e de efeitos negativos de crimes e violências”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

12 “Condição de indivíduos, famílias, grupos e comunidades que os tornam mais suscetíveis de envolvimento com o crime e a violência e de vitimização, mesmo em situações de baixo risco”. [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

13 “Condição de indivíduos, famílias, grupos e comunidades que os tornam menos suscetíveis ao
envolvimento com o crime e à violência e de vitimização, mesmo em situações de alto risco.” [MESQUITA NETO (2004, p. 527)]

14 As definições dos três tipos de prevenção, primária, secundária e terciária, trazidas aqui, são totalmente baseadas na pesquisa Arquitetura Institucional do Sistema Único de Segurança Pública, elaborada em 2004, pelo Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública, por meio de um convênio com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O eixo temático “Prevenção do Crime e da Violência e Promoção da Segurança Pública no Brasil” foi elaborado por Paulo de Mesquita Neto e uma equipe de pesquisadores. As definições trazidas aqui estão nas páginas 367-370 e o material ainda não foi publicado.

15 As informações sobre Bogotá apresentadas aqui foram extraídas do texto “A redução do Crime em Bogotá: uma Década de Políticas de Segurança Cidadã”, elaborado por Maria Victoria Llorente e Ângela Rivas, do Programa Paz Pública do Centro de Estudios sobre Desarrollo Econômico (CEDE) da Universidad dos Andes, em fevereiro de 2004, para o Banco Mundial. Para outras informações sobre Bogotá, ver http://www.bogota.gov.co.


BIBLIOGRAFIA


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21 NOTAS SOBRE A PROBLEMÁTICA DA SEGURANÇA PÚBLICA[1]

Luiz Eduardo Soares

(Visiting scholar de Columbia University e do Vera Institute of Justice, NY)

No vasto universo de questões ligadas à segurança pública[2], gostaria de destacar as que me parecem mais relevantes para o debate contemporâneo e de postular pontos de vista específicos para abordá-las:

(1) Contraste entre relevância social e investimento intelectual.

Antes de mais nada, é preciso atentar para a escandalosa –e, no entanto, negligenciada-- defasagem entre a relevância da segurança pública e a carência de estudos especializados, analíticos ou propositivos. Apesar de ocupar, sistematicamente, posição de destaque no ranking das preocupações sociais e de constituir um dos focos privilegiados da agenda pública, a segurança não tem sido tema de pesquisas e cursos de alto nível, no campo das ciências sociais. Há uma produção crescente, ainda que insuficiente, voltada para o diagnóstico analítico da violência e da criminalidade, mas uma ausência quase absoluta de trabalhos sobre políticas públicas de segurança. A ausência é tão significativa quanto o desdém que a academia, as instituições de pesquisa e as fundações de apoio à pesquisa devotam a esta ausência, eximindo-se de induzir interesses e esforços. As consequências têm sido graves: faltam acúmulo de conhecimentos especializados e massa crítica para o debate educativo, e quadros competentes não estão sendo formados. Assinale-se que a gestão de políticas públicas de segurança tem sido entregue, predominantemente, a militares, especialistas em direito e policiais, de um modo geral desprovidos de formação profissional especializada. Ao contrário do que seria desejável, a multidisciplinaridade não é praticada na formação das equipes gestoras. O frequente (ainda que, felizmente, não generalizável) despreparo dos gestores tem concorrido para a continuidade e a ampliação dos problemas, e tem contribuído para o reforço, na sociedade, de visões empobrecedoras, unilaterais e, por vezes, francamente negativas da matéria. O reforço decorre sobretudo da divulgação constante, pela mídia, das opiniões dos gestores a propósito do que fazem e da natureza do objeto sobre o qual supostamente incidiriam suas ações. O efeito da disseminação desses discursos na cultura cívica é, compreensivelmente, nefasto e nos afasta de um encaminhamento racional das questões pertinentes.

(2) Contraste entre dignidade tradicional e atual vulgarização negligente.

A contradição, no Brasil, entre a urgência dramática do problema da segurança pública e a desatenção dos cientistas sociais (e dos economistas) –e não só desses profissionais-- à questão das políticas públicas de segurança, revela, em certo sentido, um curioso desapreço pela tradição de nossas disciplinas, cuja matriz moderna é tributária de reflexões (propositivas e construtivas) sobre as condições em que se afirma e prospera a ordem pacífica e estável. O tema segurança perdeu, entre nós, a nobilidade que os pais fundadores –como Hobbes, Locke e Rousseau-- lhe atribuíam. Pode ser que a restituição teórica do prestígio perdido estimule pesquisas empíricas e estudos propositivos de que tanto necessitamos.

(3) Concentração no diagnóstico e abandono da prática (vista, tacitamente, como suja, baixa, menor), isto é, da discussão sobre políticas públicas.

Insisto na importância de uma distinção que me parece decisiva. A despeito de insuficiente, conforme assinalei acima, tem crescido a produção de trabalhos acadêmicos sobre violência e criminalidade. No entanto, o foco não tem se alargado para incluir a especificidade das políticas públicas, seja através de exames comparativos, seja através de análises de caso. Menos ainda se observa um movimento intelectual em direção ao enfrentamento do desafio prático, isto é, à formulação de modelos de projetos e políticas, na área. Para que se tenha uma idéia da magnitude desse vazio e de suas consequências, basta imaginar o que ocorreria se houvesse um vazio equivalente no âmbito das questões relativas à economia. O país já teria vivido seu colapso terminal. Bem, talvez não estejamos tão longe da catástrofe, no campo da segurança pública –e todos intuímos, por óbvia, a contiguidade entre o desastre na segurança e a inviabilização da sociabilidade civilizada, no Brasil.

(4) Fixação irrefletida em uma retórica pseudo-explicativa, cujas consequências políticas são graves.

O foco unilateral no diagnóstico, combinado ao silêncio praticamente total sobre a questão das políticas públicas específicas, tem refletido e alimentado a visão corrente entre políticos de esquerda (apesar das dificuldades implicadas nessa classificação, ainda acredito em sua utilidade e pertinência, guardadas as qualificações e relativizações impostas pelo quadro internacional contemporâneo). Esses políticos e os segmentos da opinião pública que representam quase invariavelmente se recusam a enfrentar a segurança pública como um problema dotado de alguma especificidade, preferindo pensá-la como sintoma de causas e determinações estruturais, de natureza sócio-econômica. Derivam daí os remédios que sugerem aos governantes ou que buscam aplicar, uma vez no poder. Remédios, na melhor das hipóteses destinados a reduzir injustiças sociais e, portanto, a restringir, a médio e longo prazos, seus efeitos negativos, entre os quais a criminalidade. Não disputo a propriedade cognitiva da tese, ainda que ela seja controversa (exigindo mediações e contextualizações, assim como a discriminação entre as variáveis consideradas, particularmente a diferenciação dos tipos de crime submetidos à análise), até porque meu interesse, aqui, é chamar a atenção para o fato de que mesmo na hipótese positiva de que políticas sociais e econômicas exerçam significativo impacto redutor sobre as taxas de criminalidade, essa conclusão não justificaria a adoção unilateral dessa abordagem do desafio da segurança, isto é, não justificaria a omissão dos governos no campo específico das políticas de segurança. Finalmente, note-se que a negligência da esquerda de extração marxista a reconhecer a legitimidade intelectual e política da segurança pública, como tema prático e teórico, deriva, provavelmente, das concepções tradicionais do aparelho policial como instrumento do domínio de classe, cuja função se esgotaria quando a revolução eliminasse a propriedade privada dos meios de produção e cancelasse as diferenças de classe. Não é preciso dizer que a desatenção, nesse caso, é e foi a matriz tanto da impotência atual desses setores, diante dos desafios concretos no campo da segurança pública, quanto da incapacidade de pensar criticamente o processo de transição à idealizada sociedade sem classes, que envolve um regime político, a ditadura (do proletariado) e a atuação hiperbólica da polícia (política, a serviço do Estado). Observe-se que, nas sociedades do chamado socialismo real, a transição para a democracia trouxe problemas análogos aos vividos pelo Brasil, na área da segurança, e veio acompanhada, no plano intelectual, de uma idealização correspondente, ainda que inversa, à dos nossos marxistas: supunha-se que à emergência da democracia corresponderia a redução das tensões, a afirmação da solidariedade e o declínio da violência, em todas as suas formas.

(5) A tradição da denúncia.

No Brasil, desde a época da ditadura, as entidades da sociedade civil e os movimentos sociais sensíveis à questão dos direitos humanos têm exercido com coerência, firmeza e com a eficiência possível, suas responsabilidades críticas, mas não têm sido capazes de transcender a dimensão negativa, indo além da denúncia. Por outro lado, demonstrando uma limitação simétrica e inversa, os estudiosos do processo de transição política não atentaram, salvo honrosas e raríssimas exceções, para a descontinuidade entre a edificação institucional e legal da democracia e a continuidade das práticas brutais das polícias contra os segmentos mais pobres e politicamente fragilizados da população. Nesse sentido, a transição brasileira permanece incompleta. A prática da denúncia (em si mesma indispensável, ainda que insuficiente) parece funcionar como um contrapeso à miopia teórico-analítica de boa parte dos intérpretes de nossa história política recente, cujo discurso unilateral termina por legitimar a omissão das autoridades ante o arbítrio policial. Uns e outros nada dizem sobre o que fazer, que caminhos alternativos construir e como fazê-lo.

(6) O engessamento das reações defensivas das corporações.

A unilateralidade do discurso crítico e sua associação a governos abúlicos, na área da segurança pública, acabaram alimentando a instauração de um círculo vicioso, uma vez que setores da opinião pública e a maioria dos policiais passaram a associar defesa dos direitos humanos a posturas passivas e omissas diante da gravidade da escalada criminal. Daí às acusações contra os militantes dos direitos humanos como cúmplices dos criminosos foi um pulo. Em outras palavras, apesar do valor da miltância crítica e humanista (da qual me orgulho de participar, até hoje) e do esforço respeitável de alguns governos, no sentido de controlar a polícia e reduzir a brutalidade repressiva, o fato é que a ausência de políticas alternativas voltadas especificamente para a reforma das polícias e o aumento da eficiência do sistema de segurança concorreu para fortalecer as idéias negativas sobre soluções racionais e civilizadas, desacreditando –e isso é uma tragédia-- o discurso dos direitos humanos.

(7) O movimento pendular de nossa inépcia político-intelectual, no estado do Rio, é sintoma da incapacidade de lidar com o problema de forma persuasiva, minimamente eficiente e, portanto, capaz de tornar-se irreversível, permitindo o acúmulo de experiências positivas.

Eis, em resumo, o retrato de nossa história, no período pós-ditatorial: 1982, Brizola (discurso do respeito cidadão); 1986, Moreira Franco (discurso da força policial); 1990, Brizola (respeito); 1994, Marcello Alencar (força). Nesse quadro, o programa que ajudei a elaborar para o governador Garotinho colocaria seu governo, a meu juízo, se fosse realmente implantado, em uma posição singular. De todo modo, o resultado prático da dicotomia tem sido a oscilação contínua e radical da política fluminense. Refiro-me à dicotomia que opõe dois blocos: de um lado, os defensores dos direitos humanos, que sabem o que não querem (a violência policial), e os governantes bem intencionados mas abúlicos, que sabem o que não devem fazer (a chamada política do pé-na-porta, que era típica da ditadura) –nenhum dos dois sabe exatamente o que seria desejável, em termos positivos, e como produzir essa realidade alternativa desejável; de outro lado, estão os conservadores que sempre souberam o que querem (a liberdade para a polícia agir, independentemente de seus métodos), mas não se satisfazem com os resultados (descontrole crescente da situação, degradação das instituições policiais, aumento da criminalidade, revolta da população duplamente violentada –pela polícia e pelos criminosos). Houve um tempo em que lançar a polícia, como cães, contra os pobres, bastava, para submetê-los a um cerco sanitário e manter protegidas as classes médias e as elites. Já não basta. Por isso, até os conservadores que defendiam a brutalidade policial já começam a perceber que barbárie gera barbárie e que, nas condições brasileiras, ou haverá segurança para todos, ou não haverá para ninguém. Esse momento, portanto, parece propício (dados os fracassos à direita e à esquerda) à mudança de paradigma e à emergência de uma terceira via, que postulo, entre a passividade e o arbítrio: a combinação entre respeito aos direitos humanos e a eficiência policial, como ocorre em países que têm sido bem sucedidos no enfrentamento da questão.

(8) A indissociabilidade entre eficiência e respeito às leis e aos direitos humanos.

Não se trata de retórica demagógica ou de idealismo romântico. A ligação entre esses termos é inextricável, orgânica, necessária. A experiência internacional demonstrou que a polícia só pode ser eficiente se contar com a confiança da população, seja porque precisa de dados, denúncias, registros de ocorrência e orientações sobre as microdinâmicas cotidianas do crime, seja porque a segurança inclui uma importante dimensão subjetiva e intersubjetiva, para cuja experiência positiva é indispensável o reconhecimento da legitimidade e da confiabilidade (isto é, da previsibilidade) da polícia. Além disso, tecnicamente, o gradiente de uso da força não só constitui o método funcionalmente apropriado às ações policiais, como corresponde à aplicação prática dos direitos humanos, os quais incluem a legítima defesa.

(9) O que falta: dados-diagnóstico-planejamento-avaliação-correções de rota (monitoramento), gerando uma história (experiência analisável e saber acumulável).

O primeiro, determinante e, portanto, principal problema da segurança pública no Brasil e, possivelmente, no Brasil, a meu juízo, é de natureza gerencial, até porque nada mais será possível, nenhuma mudança se viabilizará, se não houver a criação de uma organização racional administrável, isto é, de um sistema, em cujo âmbito se torne possível controlar as agências institucionais pertinentes ao campo da segurança pública, assim como a formulação e implementação de políticas. Não há política de segurança, no Brasil, porque só há política havendo diagnóstico, para o qual são necessárias informações consistentes, dados qualificados, processados de forma rigorosa. No Brasil, as informações são precárias, desde a coleta até o processamento e a ordenação que lhes dá sentido. Portanto, os diagnósticos não podem ter maiores pretensões à consistência. O que inviabiliza o planejamento, na ausência do qual, inexistem condições para avaliações regulares. A falta de avaliação impede que o sistema aprenda com seus erros e os corrija, acumule racionalmente experiência e crie uma história.

(10) O que se deve fazer e se pode fazer, no campo específico da segurança, independente e paralelamente a tudo o mais que será essencial.

De meu ponto de vista, antes de mais nada é preciso reconhecer a necessidade de que se criem as condições para a formulação e a implantação de políticas públicas de segurança (quais e em que termos, veremos adiante, na tese 17). Mesmo que haja dissenso quanto às políticas a serem definidas, escolhidas e implementadas, pode-se buscar o consenso em torno dessa tese: a improvisação voluntarista, fragmentária e reativa, a que se costuma dar o nome de política de segurança, não merece esse título enganador e está condenada ao fracasso. Nossas chances de algum sucesso dependem de nossa capacidade de planejar e avaliar, o que, por sua vez, exige mudanças organizativas radicais.

(11) Políticas de segurança, afinal, fazem alguma diferença? (demografia, economia, sociedade e cultura).

Creio que sim, mas reconheço que qualquer posição, nessa matéria, é polêmica e que são necessárias qualificações para que a posição que defendo se sustente[3]. As pesquisas empíricas têm demonstrado que muitas variáveis podem desempenhar um papel significativo nas alterações das taxas de criminalidade, dependendo do crime a que nos referimos e dos contextos históricos em são perpetrados. Essas variáveis potencialmente significativas incluem, por exemplo, a presença dos jovens na composição demográfica, os índices de mobilidade social, os indicadores relativos à escolaridade, o acesso ao emprego, a disponibilidade de armas, as taxas de impunidade, o peso da socialização doméstica, as características culturais formadoras das identidades masculinas e dos valores. No entanto, políticas públicas de segurança, graus de eficiência policial e credibilidade das polícias também podem fazer diferença, dependendo do tipo de crime e das circunstâncias históricas e culturais. Aos céticos, eu lembraria o fato inegável de que, no Brasil, há cerca de 500 mil pessoas empregadas em serviços públicos de segurança. Trata-se de profissionais armados, equipados e dotados de certa autonomia para interpretar as leis e aplicá-las. Mesmo que as formas de organizá-los e fazê-los operar não exercesse qualquer impacto sobre as práticas dos criminosos, certamente produziria consequências sobre a própria contribuição dos policiais para o resultado agregado da produção criminal. Um exemplo: em 1999, no estado do Rio de Janeiro, a política que começamos a implantar reduziu em 35% as mortes provocadas por ações policiais, que deveriam ser computadas, até prova em contrário (isto é, até que se demonstre a legalidade e legitimidade do confronto armado), como crimes letais, potencialmente homicídios. Essa redução, indicativa do aumento de controle que se passou a exercer sobre as instituições policiais e suas operações, não implicou, por outro lado, diminuição da eficiência policial, segundo os indicadores disponíveis, como apreensão de armas (que, aliás, bateu todos recordes). Portanto, deduz-se que políticas de segurança podem ser relevantes, mesmo que só consigam produzir efeitos no âmbito do desempenho policial –poderia acrescentar aqui o exemplo complementar: a importância do controle das ações ostensivamente criminosas dos policiais corruptos, como os sequestros.

(12) Gênero e etnia: a violência doméstica.

Pelo menos no Rio de Janeiro (mas, certamente, não só aí) faz toda diferença, quando se discutem os temas vinculados à segurança pública, saber o gênero e a cor (ou a identidade étnica) dos atores sociais. As mulheres estão subrepresentadas na ponta da agência criminal, quando se trata de homicídios. Os negros, por sua vez, são mais vitimados por crimes letais do que os brancos. Os jovens, entre 17 e 25 anos, são os principais alvos[4]. Ou seja, são rapazes negros que estão morrendo em grandes quantidades. Por outro lado, as mulheres estão superrepresentadas na ponta da vitimização, quando se trata de lesões corporais, por exemplo, e são as principais vítimas de um fenômenos de muita gravidade, ainda que pouco estudado, no Brasil, e distante das preocupações dos governantes, dos secretários de segurança e da própria consciência popular: a violência doméstica. Os direitos de cidadania não podem valer, para as mulheres e as crianças, apenas fora de casa. É viável e urgente incluir esses temas na agenda do debate público, das pesquisas acadêmicas (com mais vigor do que tem ocorrido) e na pauta das políticas de segurança.

(13) O impacto do crime e da violência sobre a economia.

É comum associarmos criminalidade, violência e condições econômicas, pensando estas últimas como determinantes das primeiras, mas é menos frequente atentarmos para a direção inversa: as consequências econômicas da expansão do crime, sobretudo do crime violento, assim como de outras manifestações da violência social, como o comportamento agressivo no trânsito. No caso do Rio de Janeiro, os efeitos desastrosos sobre a economia são visíveis: além dos gastos públicos decorrentes da vitimização em grande escala, há, por exemplo, a depreciação do valor de terrenos e imóveis, o desestímulo ao turismo e o esvaziamento do mercado cultural. Essa abordagem pode ajudar a justificar, do ponto de vista da racionalidade estritamente econômica, o aumento dos investimentos públicos na segurança.

(14) Os dois Brasis: tirania do tráfico e despotismo policial são a linha divisória.

O dualismo há muito ficou demodé, na sociologia brasileira. Até mesmo a dicotomia forma e substância, na reflexão sobre a política, passou a ser desprezada como expressão tosca do “baixo-clero” intelectual, supostamente incapaz de reconhecer o valor intrínseco à institucionalidade democrática. Infelizmente, a descrição dicotômica, quase caricata, a meu ver, permanece válida: o Brasil, são dois e a polícia é o que os divide. Em várias falevas cariocas, por exemplo, a população sofre a tirania imposta pelos traficantes de drogas e armas, e é submetida ao despotismo dos maus policiais, sendo que os primeiros frequentemente são menos temidos do que os segundos, porque estes são imprevisíveis, enquanto aqueles agem segundo códigos explícitos (ainda que perversos e opressivos). O pior terror é aquele imposto pela incerteza sobre o comportamento do poder, porque a imprevisibilidade impede a aplicação de estratégias de sobrevivência, hipertrofiando os efeitos destrutivos da irracionalidade. As leis e os direitos da cidadania não regem a vida coletiva, em certas áreas do território nacional. As instituição não têm vigência universalista. A população pobre deseja ardentemente a presença polícia, desde que sua ação seja legal e respeitosa.

(15) A polícia é a manifestação mais tangível do Estado.

A centralidade da polícia parece que só os pobres enxergam (porque a vivem). Estamos longe de reconhecer a importância do papel do comportamento policial para a legitimidade das instituições democráticas. Poucos pesquisadores têm chamado a atenção para esse ponto. O policial uniformizado na esquina de um bairro pobre é a forma de presença mais visível do Estado e de suas instituições, para boa parte da população brasileira. Se ele ou ela comete crimes e não merece confiança, é o Estado que perde credibilidade, são as instituições públicas que se degradam.

(16) Qual a qualidade de nosso “sistema”?

No Rio de Janeiro, é sofrível. Quando se considera a produtividade da polícia civil, é quase a pior possível. Estamos próximo de zero: apenas 7,8% dos homicídios dolosos (atenção, trata-se de homicídios, não do conjunto dos delitos) são apurados em inquéritos considerados, pelo Ministério Público, suficientemente instruídos. 92,2% são recusados pelo MP, depois de dois anos de idas e vindas, entre a polícia civil e o MP (esse dados referem-se ao início da década de 90, mas tudo indica que continuam próximos da realidade –cf. Soares, 1996). Como os casos que chegam a julgamento não são necessariamente concluídos com a atribuição da pena e seu cumprimento, deduz-se que menos de 7,8% dos assassinos são punidos. Como se vê, essa não é uma taxa de produtividade policial, mas um índice de impunidade, que sugere um quadro de tácita cumplicidade. Esses dados recomendam prudência na derivação de conclusões com base na análise de censos penitenciários: o universo das penitenciárias não funciona nem como amostra adequada, pois tudo indica que as prisões efetuadas pelas polícias refletem enviezamentos importantes. Não é por acaso que o nível de subregistro, nos casos de roubos e furtos (excetuados veículos), gira em torno de 80%, na cidade do Rio (e estão próximos de 75%, na região sudeste, o que mostra que as deficiências não são monopólio carioca).

(17) O que fazer?

Proponho três linhas para orientar as mudanças: modernização (tecnológica –especialmente na área da chamada polícia técnica-- e gerencial, além de qualificação policial), moralização (controle externo e interno, além de indução positiva) e participação comunitária (via “centros de referência”, conselhos de áreas, etc...).

(18) A necessária integração sistêmica e o aperfeiçoamento democrático.

Não podemos esquecer que as agências de segurança pública são partes de um complexo institucional mais amplo, que inclui a polícia federal (responsável pelo contrabando de drogas), o exército (responsável pela circulação de armas, no país), o aparelho judiciário (que permanece incapaz de reagir com presteza e equidade) e o sistema penal (que é problema, não solução, tornando urgente a ampliação da abrangência das penas alternativas à privação de liberdade). Um programa ambicioso de reforma teria de considerar todas essas unidades e suas múltiplas interfaces.

(19) Reformas constitucionais.

Ainda que não devamos cruzar os braços à espera de alterações constitucionais, pois há muito a fazer nos marcos da legalidade vigente, é preciso questionar nosso modelo institucional, na área da segurança. Parece-me urgente a unificação entre as polícias civil e militar e a reorganização sob regime civil, o que corresponderia à desmilitarização da segurança pública. Decisivo na superação de nossa esquizofrenia institucional é a integração do ciclo do trabalho de polícia. Nos Estados Unidos, por exemplo, há cerca de 19 mil departamentos de polícia e a pluralidade não tem significado dificuldades, porque todos eles cumprem o ciclo completo: prevenção, investigação e repressão; funções ostensivas e funções judiciárias. A unidade do ciclo é o que importa. As baixas taxas de apuração de crimes e os problemas no trânsito entre a polícia militar, a civil, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça, deixam clara a necessidade de revisão de nosso modelo segmentar, que transfere excessiva autonomia aos delegados e duplica as tarefas de investigação, ao distinguir o inquérito policial do processo criminal. O Juizado de instrução ou soluções análogas deveriam ser contempladas.

(20) A dimensão simbólico-afetiva, os governos e a mídia.

A mídia cumpre um papel fundamental na formação das percepções coletivas sobre risco e insegurança. Mas é claro que não o faz independentemente das tragédias que se acumulam e banalizam. Ou seja, a mídia não pode ser culpada por retratar (ainda que por um viés próprio e eventualmente interessado) as circunstâncias propiciatórias da intranquilidade coletiva. A meu juízo, enganam-se os que discutem violência na mídia focalizando a ficção, cujo papel pode muito bem ser o oposto do que se supõe (como sugere Bruno Bettelheim, em seu estudo clássico sobre o caráter positivo, para a formação psíquica das crianças, da violência dos contos de fada[5]). De todo modo, as pesquisas a respeito são inconclusivas ou controversas. O ponto mais relevante, creio, são os telejornais. Não advogo nenhuma forma de censura. Considero, isto sim, que os governantes não têm sabido relacionar-se adequadamente com a opinião pública e têm lidado mal com a mídia, quando o tema é a segurança. A postura oficial quase invariavelmente é defensiva, envolvendo a racionalização dos dramas cotidianos e o emprego de linguagens pretensamente objetivas e analítico-estatísticas, inteiramente impertinentes, considerando-se a incomensurabilidade de cada vida humana, a impropriedade de qualquer minimização da morte e a necessidade coletiva do luto. A defensividade pseudo-racionalizante dos governantes é o ingrediente que torna explosiva a superexposição da insegurança na mídia[6].

(21) A hiper-politização predatória.

Como a segurança pública tornou-se preocupação dominante na sociedade, valorizou-se, excepcionalmente, como issue político, o que tem estimulado uma competição predatória não apenas nociva para o interesse público (pois negligencia a substância da questão e o debate construtivo) como inviabilizadora de avanços concretos. Qualquer avanço consistente, nessa matéria, exigirá longa maturação, o que é incompatível com o tempo da política eleitoral, que requer resultados rápidos e debilita quem se dispuser a arriscar um equilíbrio precário (derivado da inércia e de pactos fáusticos) em nome da mudança real, cujo processo envolve riscos de desestabilização provisória. Os únicos antídotos seriam o estabelecimento de uma coalisão política ampla, capaz de dar sustentação a um esforço comum de resolução do problema, ou a expansão da consciência popular sobre a necessidade das mudanças, quaisquer que sejam os seus custos passageiros. Lamentavelmente, estamos muito longe de ambas as hipóteses.

[1] Essas teses são discutidas extensamente ao longo de Meu Casaco de General; 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (Soares, LE – 2000. São Paulo: Companhia das Letras).

[2] Vou me permitir alguma liberdade conceitual, para não engessar inutilmente a reflexão, cujos pontos principais prescindem, nesse momento, da elucidação de noções como a da própria “segurança pública”. Para os propósitos do presente ensaio, posso tomá-la em seu signficado ordinário. Se nos detivéssemos na história e na análise de suas matrizes teóricas, teríamos de retornar, pelo menos, à problemática hobbesiana, em que ordem pacífica sob a autoridade legítima do Estado --condição da sociabilidade razoavelmente cooperativa e da equidade contratual-- corresponde à estabilização das expectativas. Nesse sentido, a segurança pública democrática seria o tipo ideal regulatório de um processo coletivo que, mesmo animado pelo movimento imprevisível da liberdade e dos “efeitos de composição”, se orienta pela profecia autorrealizada da reprodução das condições apropriadas à celebração do contrato includente em bases igualitárias, isto é, celebrado entre agentes que se portam como cidadãos, regidos pelo princípio da equidade, cujas paixões e interesses são disciplinados pelo reconhecimento das virtudes pragmáticas da coerção social, concentrada no Estado, como detentor monopolista dos meios da violência legítima (cf. Soares, LE – 1995 – A Invenção do Sujeito Universal; Hobbes e a Política como Experiência Dramática do Sentido. Campinas: Ed. UNICAMP).

[3] Um livro importante e recente que aponta nessa mesma direção é The Crime Drop in America, organizado por Alfred Blumstein e Joel Wallman, e publicado pela Cambridge University Press, em 2000.
[4] Vide Soares, Luiz Eduardo (com colaboradores): Violência e Política no Rio de Janeiro. RJ: Relume Dumará, 1996.

[5] Refiro-me ao livro Psicanálise dos Contos de Fada. Editora ....

[6] Procuro demonstrar essa tese em Meu Casaco de General, op.cit.

Luiz Eduardo Soares
NOVAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA:ALGUNS EXEMPLOS RECENTES
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SEGURANÇA PÚBLICA: O QUE FAZER?
Luiz Eduardo Soares
(Visiting scholar na Columbia University e no Vera Institute of Justice)

O observador atento e sensível sente-se impotente ante a magnitude do problema brasileiro da violência, da criminalidade, da insegurança. Sobretudo nas grandes cidades, os números que sintetizam a contabilidade mórbida são tão assustadores, que o cidadão de bom senso sente-se esmagado, íntima e objetivamente derrotado. Esses sentimentos conduzem ao ceticismo, à paralisia ou à intensificação da demanda por ordem autoritária, na ilusória suposição de que a violência da polícia aumentaria sua eficiência e de que leis draconianas fariam o milagre de nos trazer a paz.

O comportamento da maior parte dos políticos, no Governo ou no Parlamento, não tem ajudado. Os conservadores sempre tiveram fortes convicções sobre como enfrentar o problema da segurança pública e sempre defenderam que se fizesse mais do mesmo: as polícias podem ser as mesmas, sua forma de organização pode ser preservada, desde que sejam mais duras no combate ao crime e melhor equipadas para o confronto bélico. O ideal jamais explicitado, mas tacitamente compartilhado à direita do espectro político, costumava ser: isolam-se as hordas empobrecidas com um cinturão sanitário cripto-militar para que a cidade dos incluídos celebre os benefícios da sociabilidade harmoniosa. O modelo não funciona mais. A estratégia territorial e as práticas discriminadoras fazem água por todo lado. O cerco e a brutalidade policial tornaram-se incapazes de garantir os efeitos disciplinadores de nosso apartheid. É verdade que a velha retórica salpicada de ódio e estigmas tem sobrevivido ao colapso de seu sentido prático. No entanto, apesar dessa sobrevivência puramente oportunista e demagógica, até os conservadores mais sensíveis já se dão conta de que a aposta na discriminação e na barbárie policial só serviu para estender e aprofundar a barbárie, projetando-a sobre o conjunto da sociedade, fazendo-a atingir todas as classes sociais, indiscriminadamente, e com velocidade epidêmica. Até mesmo os tradicionais defensores de posturas duras e unilateralmente repressivas já percebem que os métodos que defenderam e aplicaram conduziram à degradação das instituições policiais e à deterioração de sua credibilidade. E, por óbvio, compreenderam que sem polícias razoavelmente confiáveis, disciplinadas e organizadas, sob controle do poder público e a supervisão da sociedade, suficientemente honestas para serem capazes de operar segundo regras institucionais e princípios legais, nenhuma política de segurança digna deste nome, dotada de um mínimo de racionalidade e consistência, poderá ser posta em prática e, portanto, terá alguma chance de dar certo.

Em resumo, até mesmo os conservadores já reconhecem ou começam a reconhecer que: (1) ou a segurança pública existirá para todos ou não existirá para ninguém, por mais que as elites se protejam com grades, cães e profissionais da segurança privada; (2) é inviável pensar em segurança pública sem polícias que funcionem, isto é, que deixem de ser parte do problema e passem a ser parte da solução; (3) polícias que funcionam são as que se organizam segundo modelos racionais de gerenciamento e que operam com base em informações sistemáticas, diagnósticos rigorosos, planejamento e avaliações regulares, dispondo dos equipamentos e da tecnologia correspondentes ao tamanho das responsabilidades; (4) e, finalmente, para que elas não sejam capturáveis pelas dinâmicas criminais e não se convertam em cúmplices do crime organizado, é preciso que se submetam a códigos de comportamento institucionais compatíveis com as leis que têm a obrigação de fazer cumprir. Isso exige controle externo, participação da sociedade, o que, por outro lado, serve à reconstrução da credibilidade. Nesse sentido preciso, eficiência policial e respeito às leis e aos direitos humanos seriam faces da mesma moeda. Em outras palavras, creio que até mesmo os conservadores mais refratários ao discurso dos direitos humanos tendem a se aproximar do ponto em que se renderão à necessidade de incorporá-lo, em nome da civilização, no Brasil.

À esquerda do espectro político, o quadro não tem sido mais animador, a despeito das boas intenções. Contudo, a crise atual também aponta para avanços significativos. Tradicionalmente, políticos de esquerda e militantes dos direitos humanos temos sido muito bons na denúncia e na crítica, mas pouco eloquentes na apresentação construtiva de propostas para uma política alternativa de segurança pública. Creio que isso se deveu, sobretudo, à nossa visão da criminalidade e da violência interpessoal como meros sintomas e consequências de causas profundas, que residiriam nas estruturas sócio-econômicas injustas e opressivas. Essa concepção nos levou a subestimar a segurança pública como uma questão específica e dramática em si mesma, que exigiria enfrentamento também específico e urgente, quaisquer que fossem suas causas profundas. Até hoje, as relações entre economia, estruturas sociais, violência e criminalidade são matéria controversa e, em temas assim complexos, diferentes posições são legítimas. No entanto, ainda que criminalidade e violência fossem apenas sintomas (no que, pessoalmente, não creio, ainda que eu esteja longe de negar a importância de condicionantes sócio-econômicos e culturais), deveríamos atentar para o fato de que sintomas, às vezes, matam o paciente. Ou seja, independentemente das demais políticas cujos focos são estruturais e sem prejuízo de que se lhes atribua toda a importância que merecem, é indispensável e inadiável saber o que fazer com as polícias, com a situação caótica de nossa (in)segurança pública, com a criminalidade, com o medo que se espalha, realimentando preconceitos, aprofundando divisões sociais e injustiças, e até mesmo com os efeitos destrutivos que a falta de segurança provoca sobre a economia.
Em outras palavras, as esquerdas e os militantes dos direitos humanos defrontam-se, hoje, com um quadro que lhes impõe a atenção ao outro lado, sempre negligenciado, da moeda dos direitos humanos: a eficiência policial. Nenhuma política de segurança voltada para o respeito aos cidadãos será viável sem que haja as condições institucionais indispensáveis ao exercício de qualquer política. E tais condições incluem organização administrativa racional, sistematização na coleta, difusão e análise de dados, produção de diagnósticos, planejamento e monitoramento regulares, requalificação profissional, mecanismos de controle interno e externo, etc… Ou seja, assim como os conservadores começam a se aproximar de uma nova forma de definição do desafio da segurança pública, em cujo contexto a questão dos direitos humanos tenderá a se impor como uma dimensão inescapável da eficiência sistêmica desejada, as esquerdas já se movimentam rumo à revalorização da segurança pública, agora entendida como uma problemática relevante, o que as conduzirá ao reconhecimento de que a eficiência policial é uma dimensão intrínseca ao exercício de qualquer política de segurança comprometida, na prática, com os direitos humanos.

Se essa interpretação está correta, a crise de insegurança que atravessamos pode estar servindo à reconstrução de nossa cultura cívica e política, aproximando visões opostas, superando dicotomias empobrecedoras, transcendendo polaridades reducionistas, e, quem sabe, criando as condições para uma futura coalizão contra a barbárie e pela civilização, no Brasil.

Versão inicial do segundo texto para República:

Dependendo do ângulo de observação, o problema da segurança pública no Brasil parece inabordável. Vejam bem, não digo insolúvel: a impressão provocada pelo tamanho do desafio é tão desproporcional às nossas forças, que não conseguimos nem mesmo abordá-lo, isto é, descrevê-lo de um modo ordenado –o que seria o primeiro passo para identificarmos o que é prioritário, em meio ao oceano de dificuldades, definirmos uma metodologia de enfrentamento e, quem sabe?, uma estratégia, se não de solução, pelo menos de relativo controle. Claro, é compreensível a dificuldade, seja pelas dimensões realmente assustadoras de nossa insegurança, sobretudo em algumas grandes cidades, seja pelos erros que o setor público acumulou nesse campo.

No entanto, estou convencido de que o problema da segurança, essa pedreira aparentemente intransponível, pode ser enfrentado com chances razoáveis de êxito, se soubermos abordá-lo. Acredito que seria necessário, para uma abordagem adequada, compreender dois pontos: (1) por mais relevantes que sejam as causas sócio-econômicas e sem prejuízo do reconhecimento quanto à urgência de investimentos nessa área, deveríamos considerar que o fenômeno epidêmico da criminalidade, em sua multiplicidade, requer diagnósticos específicos e tratamentos igualmente específicos; (2) quaisquer que sejam esses tratamentos, para aplicá-los será preciso dispor de instrumentos institucionais, isto é, de agências de segurança pública, entre as quais se destacam, por sua centralidade funcional, as polícias. Em outras palavras, é necessário (1) formular políticas de segurança e (2) contar com instituições policiais capazes de aplicá-las.

Tudo isso é simples, até mesmo trivial, na teoria. Porém, na prática, é bastante complicado, porque a situação caótica que vivemos impede tanto a formulação de políticas consistentes, quanto sua aplicação. Por algumas razões elementares: só há política se houver diagnóstico, isto é, uma compreensão rigorosa da realidade que se deseja modificar; e só há diagnóstico se houver dados confiáveis, informações de boa qualidade, coletadas e organizadas de modo sistemático. Por outro lado, sem política, sem planejamento, sem a identificação de metas e meios de alcançá-las, é impossível avaliar resultados e desempenhos. Ocorre que, sem avaliação, torna-se inviável descobrir os erros e preparar-se para não repetí-los, ou seja, torna-se inviável monitorar o processo, corrigí-lo, aperfeiçoá-lo, acumulando experiências, amadurecendo, evoluindo. Sem dados qualificados, diagnósticos racionais, planejamento e avaliações regulares, as ações e agências da segurança pública perdem a razão e a memória. Viram autômatos amnésicos, verdadeiros zumbis coletivos, correndo atrás dos fatos consumados, sem agilidade e capacidade adaptativa. Condenam-se a agir sem inteligência estratégica e renunciam às intervenções preventivas. Por isso, o que se costuma chamar, no Brasil, política de segurança, com frequência, não passa de movimentos reativos e fragmentários das máquinas institucionais pavlovianamente treinadas e estruturadas para apagar incêndios, correr atrás do leite derramado e responder, mal e lentamente, às demandas socialmente mais visíveis e às tragédias que mais mobilizam a opinião pública.

Há, portanto, no fundo dessas deficiências, uma unidade: são as estruturas organizacionais das polícias que não estão funcionando. Afinal, a falta de rotinas adequadas e de treinamento apropriado, a carência tecnológica, a debilidade administrativa, a corrupção, o cotidiano desrespeito aos direitos humanos e a consequente falta de confiança da sociedade, produzem um duplo resultado: a ausência de informações –que torna impossível, em última instância, a formulação de políticas—e a inexistência dos meios indispensáveis à aplicação das políticas –se elas existissem. Sendo assim, a reforma das polícias é a pré-condição inescapável para que políticas de segurança sejam elaboradas e aplicadas, quer dizer, testadas, substituídas e aperfeiçoadas. Essa reforma teria de incidir sobre três pontos, correspondentes aos três focos da irracionalidade e da inépcia operacional: (1) modernização gerencial e tecnológica (indissociável da requalificação dos policiais e da integração entre as polícias civil e militar), para que se possam criar os elos: informações (coleta, produção, processamento, difusão e comunicação), diagnósticos, planejamento, avaliação e monitoramento; (2) moralização (que supõe o estabelecimento de novos mecanismos de controle interno e externo, como a ouvidoria, além de indução positiva através da valorização profissional); e (3) participação comunitária, pois sem transparência e engajamento social, o processo de reforma será incapaz de reconstruir a credibilidade institucional que as polícias, de um modo geral, perderam, no Brasil. Essa é uma agenda básica para começarmos a enfrentar, com mais eficiência, a violência e a criminalidade, sem ilusões românticas, mas com a convicção de que é perfeitamente possível melhorar, e muito, nossa realidade.
A SEGURANÇA PÚBLICA COMO QUESTÃO DAS ESQUERDAS
Síntese da apresentação no Fórum Social Mundial, em 29 de janeiro, 2001.
Luiz Eduardo Soares
(Visiting scholar da Columbia University e do Vera Institute of Justice –a partir de março de 2001, assessor especial da Prefeitura de Porto Alegre)

Em primeiro lugar, saúdo a inclusão, em si mesma ousada e inovadora, do tema “segurança pública” na agenda do Fórum Social Mundial. O fato é inusitado porque, infelizmente, na tradição da cultura política brasileira, aqueles que são sensíveis à urgência dos dramas sociais, com freqüência negligenciam o tema da segurança, considerando-o vicário, reflexo, dependente. Essa negligência tem sido responsável por uma grave capitulação política: uma das maiores preocupações da sociedade brasileira e, especialmente, das classes subalternas brasileiras, a segurança pública, foi submetida à liderança política dos conservadores, com conseqüências desastrosas para o próprio destino da civilização, no Brasil. A negligência, apesar de negativa, é compreensível, dadas as ligações entre certas práticas criminosas e o contexto de opressão sócio-econômica, o que conduziu as esquerdas a focalizar as causas do problema e a considerar eticamente hipócrita restringir-se às conseqüências. Outra razão da negligência é menos nobre: a teoria dogmática que define, unilateralmente, a polícia e todos os aparelhos de Estado como instrumentos do domínio de classe, ou até mesmo como mecanismos da ditadura de classe, para a qual é irrelevante a diferença entre os regimes políticos.
Eu gostaria de refletir sobre um exemplo concreto, bem brasileiro, muito presente em algumas metrópoles, no qual talvez resida o mais difícil desafio da segurança pública: o tráfico de armas e de drogas. Através do exame desse exemplo, minha intenção é chamar a atenção seja para as relações entre exclusão da cidadania e algumas formas da criminalidade violenta, seja para a necessidade de que nós, das esquerdas, sem perder de vista a necessidade urgente de agir na esfera das causas, enfrentemos o problema da segurança pública em sua especificidade, adotando políticas de segurança criativas, inteligentes, socialmente sensíveis, participativas, transparentes, democráticas, sob controle popular, eficientes e intrinsecamente comprometidas com o respeito aos direitos humanos. Em outras palavras, proponho ações em dois níveis, para combater, ao mesmo tempo, a exclusão social e o crime, com eficiência, mas sem desrespeitar os direitos humanos, jamais. O social e o econômico sempre estiveram em nossa agenda; a segurança, não. É tempo de reconhecermos não só a importância de incluí-la, atendendo ao apelo de toda a sociedade, em particular das classes populares, como também de compreender que sem o enfrentamento desse tema, a própria questão social escapará ao nosso foco –para não mencionar a questão política.
Ao exemplo, portanto: meninos pobres e negros transitam nas ruas das grandes cidades brasileiras. Eles são invisíveis; socialmente invisíveis. O recurso que encontram para reconquistar sua densidade ontológica, para impor sua presença, para recuperar sua visibilidade, é o medo. Os meninos impõem o medo para alcançar o reconhecimento de sua presença, para readquirir visibilidade, identidade interativa na dialética dos encontros humanos. A violência dos jovens, nesse caso, é o esforço desesperado de reconstrução do self, esmagado pela negação social mais drástica, aquela que superpõe, à discriminação de classe, o estigma da cor. O processo de afirmação da autoestima através da violência corresponde ao percurso de um atalho pelo avesso da relação interpessoal. Nesse quadro perverso, a produção psico-simbólica da masculinidade tende a acentuar os traços arcaicos e regressivos da misoginia e da homofobia.
Se o diagnóstico faz sentido, a terapia mais conveniente seria a devolução coletiva da visibilidade seqüestrada, não só pela oferta de emprego, não apenas pela oferta de um lugar subalterno no mundo do trabalho e das funções sistêmicas da produção e do mercado, mas sobretudo pela abertura de espaços valorizados de autocriação simbólico-cultural, para que o trabalho seja também criação, implique acolhimento nos jogos construtivos da sociabilidade e capture o imaginário jovem com possibilidades atraentes para a realização de si mesmo, como pessoa.
Focalizei o nível das causas ou fontes de alguns tipos de criminalidade e seu entrelaçamento complexo com os jogos da sociabilidade, dos quais, além do desemprego e da miséria, fazem parte valores, símbolos, atitudes, estigmas, linguagens corporais e distintas dramatizações dos (des)encontros humanos cotidianos. Passo a examinar as conseqüências do movimento desesperado dos meninos para recuperar visibilidade e um lugar no mundo. Se estivéssemos editando um filme, faríamos um corte e lançaríamos os espectadores, pela vertigem de um zoom, sobre a guerra diária das favelas cariocas. Por um momento, esqueceríamos o que sabemos sobre o abismo que cava um buraco na alma dos meninos armados do tráfico. Abismo que é pior que a fome, que é fonte da dor maior, porque condiciona a própria capacidade de humanizar-se e beneficiar-se das conquistas subjetivas e objetivas da civilização. Por um instante, deixaríamos de lado as almas cavadas e os olhos vazios dos meninos invisíveis e observaríamos seus deslocamentos nos bairros populares, nas favelas, nas periferias. O novo foco nos revelaria o avesso da invisibilidade dos meninos, o avesso de seu sofrimento e de sua carência essencial: o horror da tirania que encenam e da violência com que afirmam seu poder.
Surge, então, outro personagem, em nosso enredo: a população pobre, os moradores das áreas ocupadas pela tirania armada dos meninos, cuja visibilidade se reconstruiu no processo de domínio sobre seus irmãos de classe e de cor, cuja identidade se construiu no exercício do poder arbitrário sobre um território e seus habitantes. Encontramos, enfim, o novo terror e a nova invisibilidade provocados pela intervenção ameaçadora dos meninos em armas. O terror a que está submetida a população pobre das favelas e a invisibilidade social e política de seu sofrimento coletivo. A nova invisibilidade só é suspensa por seus efeitos violentos sobre a cidade: a bala perdida, essa loteria de tragédias. Eis aí, portanto, a conseqüência perversa de uma conseqüência perversa, cuja causa primeira é sócio-econômica. Na medida em que a primeira conseqüência (a invisibilidade dos meninos pobres) tornou-se causa de outro mal (a tirania exercida sobre a população pobre), não podemos deixar de enfrentá-la, simultaneamente ao enfrentamento da primeira causa.
É preciso que se descreva a tirania do tráfico nas favelas e que se acrescente à descrição o que tem feito a polícia, intensificando o despotismo. As liberdades democráticas não vigoram, nas favelas. Lá, a democracia, mesmo em sua dimensão puramente formal, ainda não chegou. Estão vedados aos pobres das favelas os benefícios mais elementares da cidadania. O direito de ir e vir, a liberdade de expressão, organização e participação política, não têm vigência. Em outras palavras, no Brasil, a transição democrática não se completou, ainda que nós tenhamos celebrado o fim da ditadura e da tortura, com a promulgação de nossa Constituição democrática, em 1988. A tortura acabou, no Brasil, quando as vítimas são brancos de classe média. Contra negros e pobres, persiste.
Esse exemplo demonstra que a segurança é matéria popular, no Brasil (ainda que não seja só isso). E que restaurá-la equivale à instalação de uma ordem minimamente democrática, pela qual anseiam as classes subalternas, expostas ao horror da barbárie. Para fazê-lo, temos de agir sobre a fonte da invisibilidade dos meninos (com políticas econômicas, sociais e culturais), mas temos também de agir sobre a fonte do terror (traficantes e policiais) vivenciado pelos brasileiros que vivem em favelas e periferias (com políticas de segurança que reformem radicalmente as polícias e organizem o sistema institucional de segurança de tal modo que ele possa ser eficiente, respeitando os direitos humanos –o que exigiria que assumíssemos a agenda mínima exposta em seguida). Claro que o problema da segurança pública não se esgota no tráfico armado, nas favelas e periferias, nem deveria beneficiar exclusivamente uma classe social. A ênfase justifica-se porque não valeria a pena reiterar pontos amplamente conhecidos e, sobretudo, porque minha tese central, nessa apresentação, é a seguinte: o tema da segurança pública, que já ocupa o topo da agenda popular, deve ser incorporado à agenda das esquerdas.
Considerando, analiticamente, a especificidade dos problemas de segurança –sem negar, entretanto, a necessidade de políticas estruturais--, eis a agenda mínima para a formulação de uma política verdadeira e radicalmente democrática, sintetizando as principais propostas que apresentei em detalhes no livro Meu Casaco de General[1][1]: modernização das agências institucionais de segurança, especialmente das polícias (gerencial e tecnológica, com requalificação dos profissionais, como pré-condição para que uma política seja viável –viabilizando-se dados consistentes, diagnóstico rigorosos, planejamento sistemático e avaliação corretiva regular-- e para que haja instrumentos de aplicação); moralização (via controles internos e externos, como a ouvidoria autônoma e com poder ilimitado de investigação e via indução positiva, além da valorização profissional dos policiais, que são, com frequência, submetidos a condições de trabalho humilhantes e salários indignos) e participação social.
Articulando os problemas e as políticas, guardadas suas especificidades e respeitadas as mediações, deveríamos nos pautar pela idéia matricial, em cujos termos uma boa política de segurança fosse sempre, também, de alguma forma e em algum nível, uma política social, econômica e cultural, e vice-versa, uma vez que essas dimensões são, no fundo, indissociáveis, e não há chances de êxito com tratamentos parciais, tópicos e fragmentários, e muito menos com o voluntarismo reativo. Portanto, quando insisto na necessidade de que as esquerdas tomem para si a questão da segurança e formule políticas específicas, não pretendo negar o valor de nossa tradicional sensibilidade para a dimensão sócio-econômica dos problemas mais graves que se manifestam como criminalidade. Nem pretendo ser ingênuo e negar que as polícias têm atuado como guardiãs dos interesses das classes dominantes. Pretendo, isto sim, evitar que nossa sensibilidade social nos cegue para o processo de autonomização das conseqüências, quando estas se convertem em novas causas, cujos efeitos são devastadores e exigem um enfrentamento específico. As esquerdas precisam de uma política de segurança e, por seus compromissos com os oprimidos/as e discriminados/as, por seus compromissos com a democracia radical, a transparência e a participação, somente elas serão capazes de combinar eficiência com respeito aos direitos humanos, e de dirigir as transformações profundas que essa área está exigindo, no Brasil.